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Os portugueses estão cada vez mais sozinhos. Estão também mais velhos. Desde o início do século, a percentagem daqueles que vivem sós aumentou 28 por cento e, desse universo, 55 por cento são idosos. E isso pesa. Muito. De vários modos e em diversos lugares. Tal deveria impor políticas públicas prioritárias centradas na terceira idade, um grupo com necessidades cada vez mais específicas.
Na última semana, fui por doença duas vezes a uma urgência hospitalar onde permaneci várias horas. Logo à entrada, acumulavam-se numerosas macas com idosos trazidos por ambulâncias e acompanhados de zelosos voluntários. Viriam de lares ou de habitações próprias sem apoio familiar. Ali estavam eles em modo de um doloroso abandono. Lá dentro, outras macas, desta vez já não ladeadas por qualquer bombeiro. Nas salas de observação, havia outros idosos que pouco entendiam daquilo que lhes diziam os enfermeiros. “Estou um pouco avariado da cabeça”, ouvi de um septuagenário.
Esta não é uma realidade nova para os hospitais, mas o aumento de idosos que chegam ali doentes sem qualquer retaguarda aumentou e isso deveria implicar outros apoios de uma rede hospitalar ainda pouco vocacionada para tratar a pessoa que o doente é. Nestes casos, lembro-me sempre do João, um juiz viúvo, narrador participante do romance “Em nome da terra”, de Vergílio Ferreira. Num registo muito impressivo, este velho reformado lembrava a visita de uma equipa médica à sua enfermaria para analisar a sua perna: “estão trocando impressões na abstração de mim. Não os ouço (...). Estou a assistir ao que não ouço e de que só faz parte a perna, mas não eu. (...) Os três (médicos) saíram depois pela porta do fundo. E eu fiquei enfim a sós com a perna que era minha e aconcheguei-a ao meu sofrimento”.
Também recentemente testemunhei a desilusão de alguém que, afastado das rotinas do trabalho pela chegada da idade da reforma, se viu subitamente removido do frenesim de uma profissão que o alimentou toda a vida. Esta gente demasiado velha para trabalhar é ainda nova para ser atirada para margens de improdutividade. Caberá a cada um reencontrar o seu lugar, mas nem sempre essa empreitada se revela simples, quando não está ancorada em práticas previamente pensadas e devidamente adaptadas a essas circunstâncias.
A propósito do Dia Mundial da População, que ontem se assinalou, vários números foram conhecidos: crescemos em número de habitantes, acolhemos mais emigrantes, temos menos filhos, estamos mais velhos. Este último dado reclama outra atenção, porque essa população pouco já reivindica, apesar das suas colossais necessidades.