A nomeação de um deputado socialista para o regulador (supostamente) independente da energia (ERSE) confirma a nossa iliteracia institucional. Numa democracia evoluída seria inconcebível. Em Portugal é desvalorizado. O primeiro-ministro entende que se está simplesmente a colocar em causa a honorabilidade da pessoa: "Nenhum cidadão pelo facto de exercer mandato parlamentar fica incapacitado". Devendo nós presumir a seriedade de qualquer um, qualquer um deveria ser dispensado de qualquer incompatibilidade... Eis porque também se fala tanto de conflitos de interesse mas se adotam tão poucas regras para os prevenir. Tudo isso é, ao abrigo desta lógica, questionar a honestidade das pessoas em causa antes de puderem sequer demonstrar o contrário. E, no entanto, só tendo essas regras teremos boas instituições, sendo inúmeros os estudos que identificam a qualidade das instituições como o fator mais determinante no desenvolvimento e riqueza de um país.
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O primeiro equívoco em que assenta a nossa iliteracia institucional é ignorar que as instituições públicas devem ser "desenhadas", não no pressuposto de que todos se vão comportar com integridade, mas sim de forma a nos proteger da hipótese de alguns se comportarem sem integridade. Na verdade, se o Mundo fosse composto de anjos nem sequer precisaríamos dessas instituições. Regras e práticas que garantam a independência, transparência e prevenção de conflito de interesses não fazem um juízo sobre as pessoas que a elas estão sujeitos. Antes protegem a credibilidade e autoridade das instituições e de todos os que lá trabalham. O segundo equívoco é achar que a "única" coisa para que estas regras servem é prevenir a falta de integridade. Não é. A proximidade política ou a certos interesses não é incompatível com a honestidade. No entanto, essa proximidade enviesa e diferencia sempre o juízo que se faz. É isso que também se pretende impedir. Pretende-se garantir que essas instituições decidam de acordo com a lógica que lhes foi atribuída. Os incentivos, informação e conhecimento que determinam uma decisão técnica são diferentes dos da política. É por isso que os processos de decisão e as pessoas que as tomam também devem ser diferentes.
Quase tão mau como não compreender a gravidade da violação da independência ao nomear um deputado, é responder ao escândalo da nomeação para a ERSE invocando nomeações passadas alegadamente semelhantes. Tais exemplos permitem criticar a inconsistência daqueles que no passado fizeram o que agora criticam. Mas não podem servir para desvalorizar o escândalo desta nomeação. O contrário é fazer da política um campeonato pela batota...
Quando, no Governo anterior, criámos uma entidade independente para a RTP alguns acharam isso uma enorme ingenuidade. Era abdicar do controlo que outros não se importavam de exercer... Mas a política não pode ser substituir os deles pelos nossos. A política é adotar as políticas que entendemos que melhor servem o interesse público para lá da nossa permanência no poder. Um serviço público de rádio e televisão funciona melhor se os riscos de interferência política, ou a simples perceção dos mesmos, forem diminuídos. A substituição do Governo por uma entidade independente na supervisão da RTP não garante a eliminação total desses riscos, nem que todas as decisões passam a ser boas. Mas diminui as hipóteses dos primeiros e aumenta a probabilidade das segundas.
São as instituições que estão a montante das decisões e, no entanto, discutimos muito as últimas e pouco (e mal) as primeiras. A dificuldade é que a reforma das instituições depende necessariamente da cultura promovida e sustentada por essas instituições o que origina um ciclo vicioso: a nossa cultura política impede a reforma das instituições e estas preservam essa mesma cultura política. O que mais me preocupa é quando vejo essa cultura a reafirmar-se e transmitir-se mesmo a pessoas que respeito (como é o caso do ministro da Economia).
* PROFESSOR UNIVERSITÁRIO