O acidente que provocou a interrupção do discurso do Presidente da República no decurso das cerimónias do 10 de Junho, na Guarda, prestou-se aos mais deploráveis comentários públicos. A circunstância do caso não ter merecido um esclarecimento oficioso mais respeitador da inteligência dos cidadãos, não desculpa a boçalidade cruel dessas atitudes. A força anímica da evocação do nosso poeta maior e desta língua prodigiosamente partilhada por culturas tão diversas nas mais distantes paragens navegadas sucumbiu, como disse Camões, "no gosto da cobiça e na rudeza/duma austera, apagada e vil tristeza" ["Os Lusíadas", Canto X, 145]. Numa clara afronta à inteligência dos cidadãos, parece que a vida da República se resume ao espetáculo circense dos malabarismos, pantominas e truques de prestidigitação política que continuam em exibição. Contudo, a reforma do regime semipresidencial continua a ser um interdito. O termo do mandato presidencial ainda vem longe, o que pareceria uma boa oportunidade para ponderar e discutir friamente o perfil constitucional do cargo, mas, em vez disso, pululam com profusão os nomes de putativos candidatos, sem confirmação nem desmentido, insulta-se levianamente o garante da unidade do Estado mas nunca se discute a utilidade da função!
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À tentação do ilusionismo e da pantomina não escapou também, tristemente, o meu partido - o PS! Para disfarçar a incomodidade do repto de António Costa ao secretário-geral - que vozes mais destemperadas chegaram a classificar de ato de traição! - foi montada uma insensata manobra de diversão que batizaram como "primárias para a escolha do candidato do partido a primeiro-ministro", como se estivéssemos na América ou na França, mas ignorando que, se na América não há primeiro-ministro, já na França, como por cá, o primeiro-ministro é escolhido pelo Presidente da República. Claro que temos também o caso da Itália, mas esta é uma República Parlamentar com um sistema diverso do modelo misto, parlamentar/presidencial, ainda vigente na nossa ordem jurídico-constitucional. Na França e nos EUA a chefia do Governo é decidida em eleições gerais. É por isso lógico que os partidos adotem fórmulas abertas de escolha dos respetivos candidatos. Em Portugal, o chefe do Governo é nomeado pelo Presidente da República e, em princípio, é o partido que conquistou mais lugares no Parlamento que propõe o seu nome. Mesmo quando os governos caem a meio do mandato, são os grupos parlamentares, os partidos e o Presidente da República que determinam a sua sucessão. Por isso, a escolha do candidato à chefia do Governo é decidida na eleição do respetivo líder partidário e, caso se pretendesse adotar um procedimento mais aberto e participado, a eleição do líder seria a oportunidade natural para o fazer.
Além disso, ao adotar esta fórmula bizarra da escolha do "candidato a primeiro-ministro", criou-se um precedente alheio à filosofia subjacente ao nosso sistema político misto, parlamentar/presidencial, o que envolverá consequências futuras imprevisíveis. Com efeito, separar a direção do partido da responsabilidade da governação implica a secundarização do papel da direção partidária, desta forma remetida a uma posição discreta só comparável à dos dirigentes dos partidos democrático e republicano na América do Norte, e sem paralelo com o semipresidencialismo francês onde, como ainda vimos há bem pouco tempo, o primeiro-ministro é escolhido pelo presidente eleito, o verdadeiro chefe do Executivo que, por isso mesmo, se submeteu previamente a eleições primárias abertas no Partido Socialista francês. Por fim, parece incoerente esta valorização unilateral da escolha do chefe do Executivo, quando a vitória ou a derrota do partido decorre da representação obtida na sede do poder legislativo. Não seria mais lógico privilegiar a transparência e o alargamento da participação cívica, precisamente, no processo "interno" de escolha dos candidatos a deputados? Num cenário de provável antecipação das legislativas, será prudente calendarizar quatro meses para a realização de eleições primárias a que se poderá somar novo prazo para a escolha de novo secretário-geral e a realização do respetivo congresso? Por que não se faz já, então, um congresso extraordinário? Acham que o país pode esperar?