As grandes dificuldades vividas tiram-nos o sono e, não poucas vezes, a razão. Antes de desatarmos a acusar uns e outros, e a elaborar cenários fantasiosos, não é pior tentar perceber no que estamos metidos. Comecemos pela dívida. Pública e privada. A primeira dá mais nas vistas já que quem deve tem um poder que os outros devedores não têm: cobrar impostos, interferir na vida dos outros. A dívida privada envolve tanta gente que, se não é pública é, pelo menos, do povo. Somadas dão a dívida do país. Muito grande. Com um problema: quem nos foi emprestando, começou a desconfiar da nossa capacidade de pagar e resolveu parar. Não estando preparados para nos auto-sustentarmos, foi preciso pedir ajuda. Sem ela tínhamos ido à falência. Houve factores que aceleraram este processo, mas o desfecho, sublinhe-se, era inelutável. Tínhamos de mudar de vida. E mudar de vida custa. Sempre. O aperto está a ser grande. Más notícias: vai continuar. Basta perceber uma coisa: este ano, entre défice público e privado continuaremos a depender de recursos externos em mais de 10% do PIB. Por isso é que estamos atrapalhados: não apenas temos de pagar a quem devíamos (e que deixou de nos emprestar), como ainda temos de arranjar quem os substitua, ajudando-nos a pagar a dívida e apoiando-nos enquanto reaprendemos a caminhar sozinhos, crescendo de uma forma suficientemente segura para que voltem a acreditar que seremos capazes de fazer o caminho ao andar. Perdemos reputação e precisamos de ajuda. São factos. Tentar iludi-los, incriminando terceiros, dentro ou fora de portas, de pouco serve. Talvez a culpa não seja sobretudo nossa, talvez nos devessem dar mais tempo para nos endireitarmos, talvez pudessem cobrar menos pelos fundos que nos estão a disponibilizar, talvez as autoridades europeias pudessem ser mais expeditas e ter outro discernimento, talvez os custos do ajustamento interno pudessem ser mais equitativamente repartidos, talvez as medidas pudessem ser outras. Ainda assim, o fundamental lá estaria: "alimentámos, ou alimentaram-nos, aspirações que agora são impossíveis de concretizar" dizia a CEP.
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Persistir na ilusão não ajuda, sequer, a encontrar soluções para os nossos problemas. Que bom e simples que seria se tudo se resolvesse com melhores salários e um aumento da procura interna. Entendamo-nos: reorientar para produtos portugueses uma parte das despesas que se dirigiam para importações ajuda. Não é suficiente nem está ao alcance de todos. A realidade, nua e crua, é que muitos produtores portugueses não têm preços que se comparem com os de outros países. Quem valorizar a origem portuguesa poderá estar disposto a pagar algo mais: ser português é uma característica adicional que diferencia o produto, relativizando o factor preço. Porém, como se pode ver pelo aumento exponencial da compra de produtos de marca do distribuidor, estes não são tempos para esquisitices, sobretudo para quem tem rendimentos mais baixos: são aqueles cujo emprego provavelmente mais depende de produtos nacionais que, enquanto consumidores, darão preferência aos produtos mais baratos, importados ou não. É racional. Nesta altura do ano, se não houvesse produtos "made in China", haveria muitas crianças sem prenda de Natal. Ao contrário do que nos querem fazer crer, ou possa parecer, hoje em dia não basta produzir. É preciso que haja quem queira comprar e, para isso, é preciso ter preço competitivo ou qualidade diferenciada. Um país pequeno estará condenado à pobreza se não for capaz de se inserir no mercado de trocas internacionais, procurando vender aí aquilo em que é mais competente e procurando ser cada vez mais competente naquilo que faz, de modo a conseguir preços (e rendimentos, sejam lucros ou salários) cada vez mais atraentes.
Por mais que nos queiram convencer do contrário, o Mundo não se ajustará às nossas pretensões. Podemos, e devemos, tentar mudá-lo. Conhecê-lo é condição de eficácia. Efabular produz discursos mas não alternativas. Um bom teste à greve geral.