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"Nunca me engano e raramente tenho dúvidas". Uma frase de Cavaco Silva que ficou para a história. É importante acrescentar que afirmação tinha um contexto: o então candidato do PSD à chefia do Governo (1985) referia-se especificamente à sua análise da situação financeira do país e à inflação. Ainda assim, e mesmo que queiramos ser benevolentes com o homem que foi primeiro-ministro durante dez anos, e depois outros dez como presidente da República, o que fez dele uma figura central da democracia portuguesa, não deixa de ser a manifestação de uma insuportável arrogância política. A mesma arrogância que tomou conta do debate político, à esquerda e à direita, em praticamente todos os assuntos, mas em particular no tema da imigração, que é a razão pela qual se recupera esta pérola da arqueologia política. Agora é costume dizer-se que o debate político se polarizou (ou radicalizou). Mas, aquilo a que na verdade assistimos é à multiplicação de protagonistas que nunca se enganam e raramente têm dúvidas. Entre todos, destaca-se, como sempre, André Ventura, que subscreve a absurda teoria da conspiração segundo a qual está em curso um conluio para substituir a Europa branca e cristã por “indivíduos vindos de qualquer outro continente menos deste nosso”. No entanto, e como o populismo tem várias caras (à esquerda, à direita e ao centro), o líder do Chega não é o único que procura retirar dividendos de uma discussão envenenada. É uma evidência que Portugal precisa de regular a imigração (outra é que precisa de ainda mais imigrantes). Mas regular a imigração pouco ou nada tem a ver com a atribuição de nacionalidade, como faz agora o Governo. É possível que seja razoável, mas aumentar o número de anos que um imigrante tem de esperar para ser português não resolverá nenhum problema. Quanto à ameaça de a retirar se for cometido um crime, é possível que seja justa, mas não parece ter outro objetivo do que aplacar o populismo raivoso que grassa nas redes sociais. Já a distinção, à entrada, entre imigrantes ricos ou pobres, entre qualificados ou sem instrução, criando cidadãos de primeira e de segunda, é grotesca.