Não foram as violentas subidas dos impostos sobre o trabalho e o consumo ou até mesmo a subtração de subsídios de Natal e de férias que fizeram a classe média vir para a rua na colossal vaga de protesto inorgânico, à margem e até contra os partidos. Foi o medo.
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Há muitos, muitos anos que a classe média ativa tinha dado como arrumada a preocupação pela velhice. Por mais sacrifícios fiscais que o pagamento da dívida soberana exigisse, por mais aperto nos padrões de consumo que a queda dos salários obrigasse, por mais difícil que se tornasse manter os filhos na escola, ou garantir-lhes os cuidados de saúde a que estavam habituados, havia uma coisa que a classe média ativa não imaginava que pudesse acontecer: o de ter de juntar os pais às preocupações com os filhos.
Qualquer que seja o grau de imoralidade que cada um de nós atribua aos cortes nas pensões e reformas, foi esse o ponto que impulsionou a atual crise social e desembocou nas manifestações de sábado passado.
Já não passava pela cabeça de nenhum filho da classe média ter de se preocupar financeiramente com os pais. Pelo contrário, eram por vezes os pais quem acorriam aos problemas dos filhos, ajudando-os a superar períodos mais ou menos transitórios de desemprego. A verdade é que aconteceu e está a acontecer.
A indignação que veio para a rua principiou nas próprias famílias, em conversas de avós, pais e netos, relatos de vidas árduas de trabalho e agora pilhadas. E se muitos ativos são capazes de passar por cima de algumas imoralidades para preservar a côdea de pão que o diabo amassou, os avós e os netos costumam ser implacáveis. Ora, está fácil de ver que entre avós e netos não pode ser mais fácil encontrar imoralidade maior do que a de um contrato de 40 ou 45 anos rasgado. E foi isso que o Estado fez aos contratos que assinou com reformados e pensionistas.
Estava a classe média neste ponto de indignação familiar quando o Governo resolveu ir buscar aos rendimentos do trabalho mais um sacrifício fiscal: aumentou a Taxa Social Única a quem trabalha para a diminuir a quem emprega. E, como teve de se precaver com as formalidades políticas e constitucionais, o Governo até fez notar que o Estado não ganhava nada com isto, apenas os patrões.
A indignação tinha forçosamente que passar das famílias para a rua: afinal, era mais um sacrifício e desta vez nem sequer servia para abater à dívida soberana. Apenas serviria para alguns patrões ganharem um pouco de desafogo. Só que até alguns desses, como Belmiro, cujos negócios vivem do consumo dos portugueses, vieram dizer que a ideia era errada. Ou seja: à imoralidade praticada sobre os velhinhos juntou-se a imoralidade de ir ao bolso dos trabalhadores para subsidiar apenas uns poucos de patrões.