A atualidade recente tem-nos brindado com muitas situações em que os dois conceitos acima são usados indistintamente. E, no entanto, são bem diferentes.A sra. Ministra da Justiça, por exemplo, tem vindo a ser violentamente atacada porque, relacionado com o caso vistos gold, terá dito que se tinha acabado "a impunidade".
Corpo do artigo
Foi logo um restolhar de remoques, um aqui-d"el-rei porque a sra. ministra se imiscuía na área de competência do poder judicial ou porque considerava culpados, sem respeito pela presunção de inocência, os alegados infratores.
Pois bem, tanto quanto posso perceber o que a sra. ministra disse está muito bem dito. Dizer que a "impunidade acabou" quer tecnicamente dizer que nenhum delito, provado, com julgamento competente e desfecho conhecido, fica sem castigo ou punição. Todos acreditamos que assim venha a ser uma vez que o caso está entregue à Justiça. Pelas medidas preventivas tomadas, não estou a ver grandes hipóteses de absolvição. Aguardemos, no entanto.
Diferente seria se alguém com responsabilidade viesse, finalmente, dizer que meio mundo, neste mundo anda, há muito, a fazer vista grossa. Ou seja, a fingir que não percebe ou a deliberadamente ignorar o que bem vê.
Justicialistas mediáticos como todos somos, prendíamos o audaz. E tecnicamente cheios de razão. Como provar o delito, fazer o julgamento e estabilizar um desfecho?
E, no entanto, é minha convicção que muitas instituições e muitos responsáveis o fazem, ainda que protegidos por legislação prolixa ou superficiais declarações de conformidade.
Vejamos o recente "affair" Junker. Como pode um ex-primeiro-ministro dizer (e Junker foi durante 18 anos consecutivos primeiro-ministro do Luxemburgo, até 2013), a propósito da regulamentação fiscal customizada que se aplicou durante anos a várias multinacionais globais, que nada sabia nem de nada se culpava uma vez que "não podia ter a responsabilidade política de tudo o que acontecia em cada canto do país"? O que é isto senão fazer vista grossa, deliberadamente ignorar, aquilo que sendo alegadamente legal não é, seguramente, justo?
E por que é que foi preciso um consórcio internacional de jornalistas para trazer à luz o caso, já agora com base na cooperação de fontes que permitiram o acesso a milhares de documentos formais? A EU, diz-se, esteve meses à espera de uma informação mais detalhada sobre estes acordos que o Luxemburgo sistematicamente escamoteou. Quem terá feito vista grossa a este atraso reiterado que permitiu a manutenção do status quo?
E no caso BES? Quem terá feito vista grossa a uma contabilidade com tantas plásticas? Auditores, juristas, supervisores? Quem terá ignorado os sinais, as suspeitas a ponto de não ordenar um "ir ao fundo da questão"?
Como teria sido bom ouvir a sra. ministra das Finanças dizer que " a impunidade tinha acabado". Isso quereria dizer que a supervisão tinha funcionado em tempo e em substância e que o caso tinha sido encaminhado com transparência e conhecimento de causa através dos mecanismos criados para a solução destes eventos. Ou seja, o delito tinha sido provado, o julgamento feito e a punição aplicada ao infrator.
O recurso apressado a legislação especial para operacionalizar a solução que conhecemos parece indicar que o Governo não teve outra alternativa senão remendar uma rede que tinha buracos suficientes para nos deixar cair a todos!
E agora o caso dos vistos gold. Ainda não percebi quem deu pela falcatrua. Mas, desta vez, parece que o caso está bem entregue. À Justiça o que é da Justiça, à política o que é da política.
Miguel Macedo teve a dignidade suficiente para assumir a ignorância do que estava a acontecer e, em consequência, a irreparável perda de autoridade política. A atitude que tomou não faz dele um ministro melhor ou pior, mas confirma a sua idoneidade, o que é muito mais raro.
Já quem apregoa a necessidade imperiosa de fazer de Portugal um player na competição global pela atração de capital, deve perceber que esse é um desafio que só se deve aceitar assente em propostas diferenciadoras e sustentáveis (que vão muito para além da fiscalidade ou do subsídio) e não em trocas de valor em que o país fica sempre a perder.
Afinal, alguém teve de fazer vista grossa para achar que andares de segunda categoria valiam 500 mil euros e que 500 mil euros é preço à altura de um livre-trânsito para todo o espaço Schengen.