Escrito em oito cadernos quadriculados, entre 1941 e 1943, o Diário de Etty Hillesum é uma viagem assombrosa à interioridade, em que se procura uma beleza e uma plenitude na vida aparentemente impossíveis num período de trevas. A jovem judia de Amesterdão traduz com mestria a possibilidade da escrita como ação, na busca incessante de um sentido que nos cabe partilhar com os outros. Permanecendo imune ao horror, ainda que conscientemente mergulhada nele.
A 3 de julho de 1942, depois de afirmar a certeza do extermínio dos judeus, explica com toda a clareza essa visão coletiva de testemunho e de aprendizagem: se a sua vida for interrompida sem conseguir transmitir o que aprendeu, alguém depois de si continuará essa tarefa. E é por isso, acrescenta, que a vida tem de ser vivida “tão completa e convincentemente quanto possível”, para que quem venha a seguir “não precise de começar de novo”.
A herança dos que pensaram e agiram antes de nós deveria poupar-nos caminho, e por isso nos sentimos tentados a confiar que o direito internacional e os consensos obtidos nas principais organizações mundiais nos protegeriam progressivamente de matanças em larga escala. Pelo contrário, assistimos diariamente à carnificina e à morte de milhares de crianças palestinianas. Não basta exigir um cessar-fogo humanitário, é urgente que a comunidade internacional endureça a posição relativamente a Israel - sem procurar pretextos para justificar o injustificável, de parte a parte.
O que se passa em Gaza representa a falência da democracia e dos seus valores. A incapacidade e descrédito do mundo ocidental. Ali cruzam-se as questões políticas, éticas e morais que nos qualificam na forma como escolhemos a ação ou a inação. É difícil prever os efeitos de aceitarmos a desumanidade. Mas uma coisa é evidente: se não formos vigilantes, se não protegermos os valores sobre os quais alicerçámos uma casa comum, o discurso sobre a democracia será vão. Sem ação, estaremos sempre a começar de novo, obrigados a trilhar incessantemente os mesmos caminhos de escuridão.

