A Ucrânia prossegue a luta pela liberdade. Mas para nós, que observamos, já passou a exaltação dos primeiros meses, em que a guerra parecia um gigantesco canto de Carmina Burana, e chegou o tempo da música triste lá ao longe, estrangeira, nada nossa.
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Enquanto irmãos lutam e irmãos morrem, hoje basta fechar-lhes a porta da rotina para deixarmos de os ouvir.
Depois dos cinquenta e um dias de Waco, o cerco à seita que se barricara num edifício, um dos atiradores furtivos disse que pensava na violência como uma entidade, um vulto, uma sombra que pousa sobre um sítio onde haja pessoas. E nelas actua, faz o que nasceu para fazer. Saciando-se com a morte, atirado o sal à terra, a violência levanta voo em direcção a novas vítimas.
A violência continua pousada sobre a Ucrânia. E agora, sombra corvo, debica Bakhmut, onde as trincheiras por vezes distam apenas vinte metros entre si. As imagens lembram essas outras trincheiras escavacadas pela violência, no tempo em que na Europa se desfaziam os impérios.
Numa estrada a leste de Bakhmut, a sombra corvo é mesmo cinza: em redor da linha da frente, à distância de um arremesso de granada, as árvores desfazem-se em cotos - os galhos não voltam a ver folhas. Tal como alguns braços não voltam a ver mãos. E sobre a terra revolvida plantam-se os soldados mortos. Mas nada floresce nesta horrível jardinagem.
Passado mais de um ano de guerra, para nós que a vemos de longe, sobre a luta ucraniana pousou também outra entidade: a rotina, que torna pequenas as coisas grandes, e grandes as coisas pequenas. A guerra trazemo-la no bolso tanto quanto as preocupações quotidianas.
E mais é assim para a minha geração, que nasceu na década do fim da história (benditos anos noventa), e agora não sabe lidar com ela. Sabemos lá o que é a guerra, como se organiza a violência, nós que nem prestámos atenção ao Dia da Defesa Nacional, nós que felizmente nunca espreitámos para a alma de uma arma. Mesmo que nos forcemos a conhecer as suas consequências - e que a vejamos na televisão -, a guerra é um teorema impossível de resolver.
É estranho isto, inconcebível tudo: eu bem tento seguir os mapas que Danys Davydov publica diariamente no seu canal de YouTube. Sei o traço da linha da frente, vejo Bakhmut que ainda aguenta, e a Ucrânia marcada a sul pela mancha russa. Mas a violência que avança e recua é tão inconcebivelmente real que mais parece ficção.
Escritor