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Se o momento político não fosse este, se a pressão política não estivesse ao rubro, talvez os socialistas não achincalhassem a proposta de revisão constitucional do PSD. O momento escolhido pelo PSD não terá sido o melhor, basta ver que nenhum partido está interessado no tema, mas a verdade é que Pedro Passos Coelho tem razão quando diz que 60 ou 70 por cento dos eleitores não se revêem nalguns princípios da Constituição. Não serão esses princípios que travam o nosso progresso, nem é benéfico que se ande sempre de volta da lei fundamental a alterá-la. Mas há-de chegar o dia - e não haveria mal que fosse agora, se para tanto houvesse condições - em que a revisão avançará expurgando o que são sinais claros de tempos revolucionários.
Mas foi a propósito da revisão avançada pelo PSD que acabou por se discutir algo de realmente importante, partindo embora de uma premissa errada. O PS atacou o PSD acusando-o de querer desmantelar o Estado social, coisa que não era clara na proposta apresentada mas que, convenhamos, servia aos socialistas para desviar as atenções do défice orçamental e para liderar um combate em que teria Bloco e PCP, senão a seu lado, pelos menos mais parcimoniosos na crítica. Esse sim é um debate que tem de ser feito. É pena que ele avance sob a pressão de eleições próximas (as Presidenciais), sob a pressão de umas contas públicas à beira do descontrolo, não se sabendo o que será o próximo Orçamento, sob a pressão sempre latente de um governo minoritário à mercê de um Parlamento que a qualquer altura o fará cair. Mas a discussão acabará por ser feita, a bem ou a mal. E o ponto de partida é muito simples: não temos dinheiro para continuar a viver como até aqui.
Venha ou não o FMI, já se percebeu que há duas coisas que têm de mudar por muito que se tente adiar os cortes na despesa pública. Em primeiro lugar, é inevitável que o número de serviços e de funcionários públicos diminua, e com eles algumas regalias que lhes estão adstritas. E, em segundo lugar, o Estado vai ter de deixar de pagar muitos dos apoios sociais que temos como certos.
Alguém dizia, há dias, que Zapatero está em Espanha a percorrer o caminho que poderá retirar o país da crise, mas que ao mesmo tempo está a assinar a sua sentença de morte, que será lavrada nas próximas eleições, tal a dureza da política seguida. O tom optimista do nosso primeiro-ministro, que se compreende, embora às vezes custe a aceitar, não durará sempre. A verdade é que as coisas não funcionam com esta simplicidade. Mesmo que Zapatero esteja a percorrer tais caminhos, a docilidade de Sócrates não lhe dará, certamente, o caminho da vitória eleitoral. Pelo contrário: transparece cada vez mais a ideia de que os cidadãos estão disponíveis para aceitar sacrifícios, se eles, obviamente, lhes proporcionarem um horizonte mais desanuviado. Dizem, aliás, os economistas que essa disponibilidade já não é escrutinável: se não escolhermos livremente esse caminho, alguém de fora, cortando-nos empréstimos, acabará por no-lo impor.
É por isso que a discussão próxima do Orçamento é vital. Não tanto para acertar um caminho cada vez mais evidente e consensual (excepto para PCP e BE), mas para lançar uma discussão que terá de ser prolongada e profunda e que, por isso, não se esgotará no Orçamento. Um discussão séria sobre o papel do Estado, o que poderemos esperar dele. É tempo de mudarmos de mentalidade. Não conseguiremos viver como até aqui. Citando John F. Kennedy, é tempo de pensarmos no que podemos fazer pelo Estado.