Num café, o cliente dirige-se a um empregado que passa e pergunta-lhe as horas obtendo como resposta "Desculpe, mas não atendo desse lado". Esta rábula é, por vezes, usada para ilustrar os problemas do excesso de especialização no trabalho. Recordei-me dela a propósito da polémica sobre o cartão de cidadão. Ainda que mantenha o B.I. antigo, amigos meus referiram-me que com o novo cartão haviam mudado de secção de voto. Parece que não é necessariamente assim, mas apenas para quem mudou de residência no entretanto. Sendo esta a situação, pensei que quem tirasse o cartão de cidadão fosse avisado do facto. Não! Tal como o empregado do café, essa não é uma incumbência desses serviços. Para alertar o cidadão seria preciso um outro serviço mandar um aviso. Mais do que as responsabilidades políticas pelo falhanço, espanta-me que não haja ninguém que denuncie este episódio como o exemplo acabado do falhanço da reforma do aparelho de Estado. Cada um nas suas tamanquinhas, trata do que é seu e não quer saber de mais nada. Não há uma visão de conjunto do processo. Ninguém o gere. Resultado? Seria necessário um outro serviço enviar uma notificação a cerca de 770 000 eleitores a quem havia sido emitido o novo cartão de cidadão. Se essa carta custar, entre processamento e expedição, dois euros, é mais de milhão e meio de euros que se desperdiçam, como consequência de má gestão e organização da máquina do Estado. Assim, de milhão em milhão, se constrói o défice que nos abafa. Em vez de tentarem construir um facto político e pedirem a demissão de meio mundo, os partidos da Oposição andariam bem melhor se denunciassem a ineficiência que resulta de mantermos uma lógica verticalizada, especializada e estanque entre os serviços da administração pública. Pelos vistos ocorreu a alguém que deviam mandar o aviso, mas não lembrou a ninguém alterar o processo de funcionamento e era aqui que estaria o ganho.
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Não obstante todos os erros que aconteceram, é óbvio que uma parte da culpa está com os eleitores. Viciados em remeter para o Estado a solução de todos os problemas, foram muito poucos os que cuidaram de se informar. A complacência com que partidos, comentadores e Comunicação Social trataram esta falta de empenhamento cívico foi patética. Dependentes, infantilizados, os portugueses cada vez são mais indulgentes consigo próprios. "Se todos fossem como cada um de nós, bem iria o país. O problema são os outros". E são os outros, máxime os empresários e o Estado que os devem resolver: um estudo associado ao Projecto Farol mostra ser essa a opinião de mais de três quartos dos portugueses. Todo o alarido sobre a canção dos Deolinda vai nesse sentido. Alguém, leia-se o Estado, os empresários, em resumo, os outros deve resolver o problema do desemprego de uma geração qualificada, mesmo que tal seja com uma licenciatura em ponto de cruz. Para completar o ramalhete só falta mesmo aparecer um iluminado a sugerir uma alteração legislativa que permitisse resolver o problema administrativamente. Como a procissão ainda vai no adro, não é de perder a esperança...