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Apesar de estar cristalinamente prevista na Constituição, a organização descentralizada do Estado no território continental não só nunca foi cumprida, como tem um historial de contradições que pouco dignifica os nossos dirigentes políticos. Nos oito anos que duraram os governos de António Costa pouco fizeram pelo processo, não obstante terem tido o mérito de o voltar a pôr em movimento. Em 2018 foi iniciado um processo de transferência de competências para os municípios, em 2020 foi alterado o processo de designação dos presidentes das CCDR, dando-lhe uma legitimidade mais alargada e em 2022, foi dado início a um processo de transferência para estas dos serviços desconcentrados do Estado; em 2023 as CCDR ganharam o estatuto de Instituto Público.
Foi um processo algo estranho, já que não se entende como é que se transferem os serviços regionais do Ministério da Agricultura, mas não se transferiram os das florestas, à época tutelados pelo Ministério do Ambiente, ou a gestão da água, que é o mais horizontal de todos os recursos. E, além de estranho, envolto em grande confusão por não se terem integrado os serviços no seu todo, com as respetivas chefias intermédias e de topo e não se ter aprovado legislação para assegurar o exercício das necessárias tutelas setoriais.
A campanha eleitoral para as legislativas deste ano trouxe inevitavelmente este debate para a ribalta. Com a mudança política que se operou, não foi difícil prever as pressões para reverter esta medida de integração nas CCDR: umas por convicção centralista; outras porque foi uma decisão do governo anterior; e outras por razões essencialmente corporativas.
A integração dos serviços desconcentrados da Administração Central nas CCDR é um percurso necessário para se avançar gradualmente com o processo de descentralização. Por isso, ao contrário da vox populi, apesar de ter nascido torto, este processo pode endireitar-se, se se corrigir o que está mal. Em primeiro lugar importa reforçar o apoio aos agricultores. Os serviços desconcentrados do Ministério da Agricultura já estavam há muito debilitados. Não foi agora que perderam peso, pois os funcionários das DRAP continuam onde estavam. Urge, neste plano, atuar a três níveis: repor as chefias intermédias; renovar o envelhecido quadro de pessoal; e, sobretudo, criar um grande programa nacional de reforço da capacidade técnica das organizações representativas dos agricultores, por forma a que estas possam prestar o apoio técnico e de gestão de que os agricultores tanto precisam nestes tempos de mudanças tão rápidas.
Em segundo lugar, obviamente que o ministro da tutela tem de ter capacidade de controlo sobre quem está no terreno a implementar, monitorizar e fiscalizar a política agrícola. Isto pode resolver-se com a nomeação de um vice-presidente da CCDR, em Conselho de Ministros, por proposta do ministro da tutela setorial, ou conjunta deste e do ministro que tutela as CCDR.
Como temos em Portugal uma cultura política com défice de visão estratégica, que só valoriza os proveitos da gestão do poder a curto prazo, dificilmente um governo fará reformas como esta. E se conseguir fazer alguma coisa, o governo que vier a seguir rapidamente se encarrega de desfazer o que foi feito. E não saímos disto, passando depois a vida a queixarmo-nos de que os recursos vão sempre parar aos mesmos...
É por isso que acredito cada vez mais que a descentralização só se fará através de pequenos passos, de forma muito gradual. Assim sendo, o que está em causa neste momento no nosso país é, ou andarmos mais uma vez para trás, ou consolidarmos este pequeno passo, completando-o com a integração de outros serviços quando o governo se encontrar numa situação politicamente mais consistente.
Presidente da Comissão Vitivinícola do Dão, ex-ministro da Agricultura