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A inteligência artificial (IA) está a transformar o presente da medicina. De conceito experimental evoluiu para ferramenta clínica, com aplicações concretas na prevenção, no diagnóstico e na terapêutica. No entanto, o futuro da IA em saúde não será determinado apenas pelos avanços tecnológicos - dependerá, acima de tudo, das pessoas, das instituições e da nossa capacidade coletiva de promover uma inovação responsável, cientificamente rigorosa e estrategicamente orientada para o bem comum.
Na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP), o seu bicentenário coincide com uma aposta firme na construção desse futuro. A criação do Centro Multidisciplinar de Inteligência Artificial em Saúde traduz o compromisso com a inovação clínica sustentada, reunindo médicos, engenheiros, cientistas de dados e decisores para desenvolver soluções baseadas em evidência clínica, sempre com o doente no centro.
Assim, devemos trilhar um caminho de desenvolvimento e avaliação de soluções de IA orientadas para a resolução dos problemas de saúde concretos, soluções personalizadas e adaptadas ao contexto português. Este é o caminho seguro e eficiente, mas exige mudanças estruturais a nível nacional.
Desde logo, a ausência de um Organismo Notificado Nacional para dispositivos médicos/aplicações informáticas com IA impede que Portugal valide, certifique e monitorize autonomamente essas tecnologias que estão já a transformar a prática médica. Sem esta capacidade regulatória, o país depende de instâncias externas, que são escassas, o que trava a inovação local e enfraquece a nossa capacidade no panorama europeu e global.
Ainda assim, Portugal tem-se afirmado na liderança internacional em algumas áreas da chamada IA vertical, desenvolvendo tecnologias altamente especializadas para desafios clínicos concretos. O caso da saúde digestiva é paradigmático. Através da ligação entre a academia e hospitais com empresas criadas no Porto, têm sido desenvolvidas soluções inovadoras aplicadas à endoscopia e validadas em centros de referência na Europa, América do Norte, América Latina, Médio Oriente e Oceânia.
Estas tecnologias permitem uma precisão diagnóstica sem precedentes em procedimentos como a cápsula endoscópica (Deep Casule (r)) e a endoscopia pancreatobiliar (Smart Cholangio (r)), elevando o padrão de qualidade assistencial. O reconhecimento internacional é evidente quer pelos centros de topo mundial que as estão a testar, quer pelos múltiplos prémios internacionais. Este cluster de IA vertical surgido no setor da saúde no Porto tem-se destacado também pelas patentes, valorização económica e fase adiantada de aprovação para uso clínico.
Mas a revolução digital da medicina não se faz só com algoritmos. Faz-se com pessoas com formação híbrida: profissionais que saibam cruzar o saber clínico com competências tecnológicas e pensamento computacional. Por isso, a FMUP lançou a licenciatura em Saúde Digital e Inovação Biomédica, a primeira em Portugal a preparar
os profissionais do futuro - capazes de entender que a IA deve ser ensinada com o mesmo grau de exigência com que ensinamos Anatomia ou Farmacologia.
É tempo de abandonar a visão que tem levado a tantos insucessos: a dos médicos como meros validadores de tecnologia. Os clínicos devem ser criadores, construindo soluções tecnológicas com relevância para os serviços de saúde, com aplicabilidade real e impacto humano. Essa mudança de cultura é essencial para garantir que a IA responde aos verdadeiros desafios da prática médica, com segurança, equidade e valor acrescentado.
Na FMUP, acreditamos que a medicina do futuro se constrói hoje - com ambição, regulação inteligente, e sobretudo, com formação de excelência. Porque a inteligência artificial é já uma linguagem essencial da medicina contemporânea. E quem não a fale não irá a lugar algum.
Artigo publicado no âmbito do bicentenário da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto em parceria com o JN


