Inteligência emocional, curadoria e criatividade territorial (I)
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Aos olhos do observador emocionalmente inteligente os territórios não são um simples produto administrativo, eles são cristais multifacetados, reinventados e recriados de forma continuada e onde os fatores identitários, as artes e a cultura têm um papel fundamental. Desse empenhamento faz, também, parte a cooperação territorial descentralizada, um recurso acessível e barato, que aumenta os ativos à nossa disposição e valoriza os elementos que antes podiam ser considerados marginais. Ou seja, os territórios têm mais recursos e ativos do que nós imaginamos, apenas não foram ainda redescobertos e reconduzidos pelo trabalho de investigação-ação-extensão. Esta é a essência dos signos distintivos territoriais (SDT) que nos ajudam a transportar conteúdo e valor imateriais para a valorização dos sistemas produtivos locais e regionais.
A este propósito, a minha tese é simples. Os territórios são um objeto de conhecimento, mas, precisam de ser, também, um objeto de desejo, um território vivido, sob pena de serem um simples arranjo de conveniência. No presente, falamos, com frequência, de NUTS II e NUTS III (nomenclatura de unidades territoriais estatísticas), de associações de municípios, de euro-regiões, de comunidades intermunicipais (CIM), de euro-cidades, de grupos de ação local (GAL), de cidades inteligentes, e todas estas denominações coexistem numa região como o Algarve. E porquê tanta proliferação de delimitações e denominações? E qual é o genuíno sentido, significado e alcance dessas designações? E que coerência elas mantêm entre si? E representam elas territórios vividos e verdadeiros objetos de desejo, digamos, uma geografia sentimental? E qual é a razão para não adotar as designações de barlavento e sotavento, muito mais próximas de uma cultura regionalista de longa data e, logo, também mais próximas de um território-desejado?
De facto, tenho muitas dúvidas de que possamos cair apaixonados por uma unidade estatística territorial, por uma comunidade intermunicipal criada por decreto-lei, por associações meramente administrativas ou por arranjos de circunstância que visam única e exclusivamente viabilizar candidaturas comuns aos fundos europeus. E qual é o impacto que este desejo reprimido tem no nosso desempenho enquanto atores regionais com responsabilidades diretas no desenvolvimento de uma região?
Acresce que, num tempo de aceleração tecnológica e digital e formação de ambientes inteligentes, não há, manifestamente, muito tempo para exercícios de inteligência emocional para além daqueles que acontecem e são veiculados nas redes
sociais, quase sempre meros epifenómenos de uma ligeireza impressionante. Não há, de facto, condições para grandes estados de alma ou mobilizações inspiradoras, não obstante a multidão de festas, feiras e festivais que se realizam pelo país todo. Ao contrário, a inteligência racional e a inteligência artificial, por intermédio de algoritmos técnico-administrativos, tomam conta da ocorrência e onde poderia e deveria estar um exercício participativo de inteligência coletiva e de bom senso em redor de um território vivido, estará, porventura, um exército de sensores, câmaras e outros dispositivos de observação sensível, a maioria de vigilância e rastreabilidade, silenciosos, ocultos e furtivos, e debitando o seu trabalho em écrans colocados à distância.
Hoje em dia, quando falamos de NUTS, de CIM, de GAL, de Euro-regiões e Euro-cidades, de cidades inteligentes, entre outros programas de índole territorial, tudo, afinal, se resume a uma mastigação rápida de fluxos financeiros que é necessário maximizar a todo o custo para mostrar resultados efetivos em futuras avaliações intercalares e, logo de seguida, preparar reprogramações e a próxima edição de um novo quadro comunitário de apoio, se possível ainda com mais transferências de fundos que o anterior. Tudo se joga entre fundos candidatados, comprometidos, aprovados, contratualizados, realizados, certificados, transferidos, liquidados.
Observe-se a região do Algarve, uma cidade-arquipélago de 16 municípios e cerca de 470 mil habitantes (2021). Ninguém faz o discurso anual sobre o estado da região NUTS II, sobre o estado da euro-região AAA, sobre o estado da comunidade intermunicipal do Algarve, sobre o estado do barlavento ou o sotavento algarvio, isto é, ninguém parece morrer de amores por estes territórios-zona que hoje ocupam e recortam o território algarvio.
A grande questão reside em saber até que ponto um determinado território é não apenas um objeto de conhecimento e uma geografia político-administrativa, mas, também, um território-desejado que mobiliza entusiasmo e adesão para um projeto de futuro. Sim, porque um projeto verdadeiramente inovador e mobilizador congrega inúmeros recursos emocionais e sentimentais que são da maior relevância para o planeamento e a programação regionais. As três inteligências, racional, emocional e artificial, precisam de estar reunidas para tal propósito. Se, ao contrário, um território for percebido como um mero recipiente, a inteligência emocional e a inteligência racional nunca se encontrarão para um grande projeto de futuro, isto é, não haverá inteligência coletiva territorial digna desse nome e capaz de reduzir os défices de conhecimento já acumulados. Nestas condições poderemos, talvez, ser um território smart, mas muito dificilmente conseguiremos ser um território inteligente e criativo.
A inteligência emocional, no registo que acabo de enunciar, é sobre a arte da composição dos territórios-rede-desejados e só ela nos pode levar para lá de um simples cardápio político-administrativo. É na transição das tecnologias de informação e conhecimento (TIC) para os territórios inteligentes e criativos (TIC) que muitas promessas se jogam, mas, também, alguma ambiguidade. Por um lado, a conexão digital traz o problema para o espaço público, faz ruído à sua volta, chama a atenção da sociedade civil e do poder político. Nessa exata medida, o poder político fica confrontado com as suas responsabilidades públicas e é obrigado a agir. Por outro lado, as comunidades online precisam ainda de fazer prova de vida, isto é, não podem tratar a realidade como um mero epifenómeno, reduzida a uma série de eventos que se consome com grande voracidade.
Estamos todos a aprender esta transição, uma aprendizagem que começa no grande universo imaterial das comunidades online e redes sociais com a germinação de uma ideia, que se transfere, de seguida, para uma incubadora digital ou espaço de coworking, que se revela e ganha reputação no espaço público e que, finalmente, se materializa num ato orgânico de criação e enraizamento territorial como se tivesse voltado às origens das comunidades reais.
Com efeito, uma indicação geográfica, uma denominação de origem, uma marca com notoriedade, um nome prestigiado, uma paisagem literária, um ícone histórico-cultural, um vestígio arqueológico, um percurso de natureza, um endemismo local, o artesanato, todos são um bom pretexto para a arte da recomposição dos territórios e suas cadeias de valor tradicionais. É uma grande oportunidade para as regiões mais pobres em recursos materiais. A inteligência emocional leva-nos até ao coração destes sinais distintivos territoriais e aumenta extraordinariamente, esperamos nós, o número e a qualidade das representações que fazemos dos territórios e de cada um em concreto. E esta iconografia territorial é um discurso de legitimação, mas reporta-se, também, a um território desejado na medida em que encerra múltiplas territorialidades, logo, objeto de muitas geometrias variáveis de sentimentos e desejos.
Uma imagem promissora do que acabo de dizer reside naquilo que eu designo como a 2ª ruralidade, em que a novidade mais importante será, justamente, a emergência de uma grande variedade de redes e plataformas tecnológicas e sociais, com graus diferenciados de enraizamento no território. Inicialmente, tudo poderá parecer um pouco
caótico, mas na 2ª ruralidade os neorurais desempenharão um papel fundamental e tornarão o campo quase irreconhecível tal como o conhecemos hoje. A arte das comunidades online e das redes sociais vai trazer-nos uma espécie de realidade aumentada em múltiplos formatos de agricultura acompanhada pela comunidade (AAC), de gestão comunitária e agrupada de aldeias e vilas, de economia da partilha e economia circular, onde não haverá recursos ociosos e expectantes e onde a patrimonialização dos recursos arqueológicos e históricos e a sua moderada turistificação serão, também, uma realidade. Não será o melhor dos mundos, mas será seguramente um mundo melhor.
Notas Finais
A inteligência emocional está no centro da desafeição cívico-política que hoje se verifica em quase todos os sistemas políticos domésticos. Esta desafeição espelha um sério desequilíbrio. O poder reside mais nas redes institucionais e burocráticas do estado-administração, enquanto o capital social, mais difuso e inorgânico, mas, também, mais irreverente e imaginativo, reside nas redes sociais e comunidades online. A expressão mais vincada deste desequilíbrio mostra-nos que o ativismo político das gerações mais jovens passou a morar nas redes sociais e nas comunidades online onde procura pertencimento, identidade e reconhecimento. Estamos, pois, ainda longe de uma interação favorável e positiva entre comunidades online e offline. Há aqui muito trabalho para fazer em matéria de investigação-ação-extensão.
(Continua….)