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Há dias, por acaso, ouvi uma das músicas do novo CD do Camané. Há diversos anos e há diversos CD que eu gosto muito do Camané. Entre uma jovem geração de fadistas que vieram recuperar o fado e dar-lhe novo impulso, Camané é, sem hesitar, o que eu mais gosto. Pela sua voz, pela sua forma de cantar, pelo cuidado musical dos seus discos e, sobretudo, porque esgotei a capacidade de ouvir fados revivalistas, cantados até ao limite, sempre iguais, sempre a imitar saudosamente a voz de alguém. Seria assim como imaginar os franceses a cantar diariamente e só a Piaf, ou os ingleses a cantar versões sem fim e sem limite dos Beatles, ou os americanos a cantar Frank Sinatra.
Levámos ao limite este revivalismo e não foi só no fado. As televisões, os jornais e os livros encheram-se e não param de se encher de textos e biografias de Salazar e de Cunhal, como se só estivéssemos bem olhando para trás. A governanta de Salazar, a vida do ditador, a vida de Cunhal, os livros de Cunhal, inventa-se, reescreve-se, imagina-se e vivemos como que parados no tempo. Somos a imagem de um país às arrecuas.
Camané impôs-se sem necessidade de cantar sempre o que já está no nosso ouvido e que apenas nos faz saudades de tempos passados e serve para dizermos que "canta bem mas não é a mesma coisa que a Amália ou o Zeca". Inovou o fado, trouxe-o de volta e a mim conseguiu pôr-me músicas no ouvido, o que confesso é difícil, e até a trautear o seu espantoso fado "A Guerra das Rosas" do seu último disco. Camané impõe-se com a sua voz e a sua forma serena e doce de cantar e encontrou em José Mário Branco um fantástico director musical e em Manuela Freitas uma poetisa que nos faz saber letras de cor, como aconteceu com Ary dos Santos ou Carlos Tê.
Há muito que das televisões desapareceram os cantores portugueses. Não têm lugar entre os insuportáveis concursos e as telenovelas nacionais rascas, menores, de um ridículo que envergonha e com histórias (?) de um mau gosto absolutamente chocante. Na música, também as televisões se ficaram pela pimba e muito, muito raramente, nos dão algo de interessante. Os novos cantores portugueses não cabem na programação e eu, que sou absolutamente contra as quotas, não entendo para que serve um serviço público de televisão, com uma RTP de dois canais que se esgotam na mediocridade nacional. É certo que vi diversas entrevistas com Camané na televisão, pequenos apontamentos em que falava do disco, mas não vi um programa onde o cantasse. Tenho muita pena (não estava em Lisboa) de não ter conseguido ir ao CCB no dia da apresentação do seu novo disco. Resta-me trazê-lo no carro e ouvi-lo, imaginando como será cantado ao vivo.
Neste intermezzo entre o PEC3 e o Orçamento do Estado, em que se tenta desesperadamente perceber o que vai ser de nós num futuro próximo e longínquo, chegam duas boas notícias: a atribuição do Prémio Nobel da Literatura a um grande senhor da escrita, Mario Vargas Llosa; e a atribuição do Nobel da Paz a Liu Xiaobo, o professor de literatura chinesa que se encontra novamente preso.
Tem-se a sensação que o Ocidente olha para a China com toda a hipocrisia de a reduzir a negócios, como se os princípios fundadores do Ocidente, a liberdade e a democracia, não se aplicassem à China comunista e isso não importasse num Mundo pragmático em que tudo se move por dinheiro.
O facto de o Partido Comunista Português publicar um comunicado, lamentando o Prémio Nobel, só pode surpreender quem não souber que "não há almoços grátis".