Há tempos escrevi uma crónica - "O poeta mais popular de Santo Tirso" - atravessada pela autocomiseração, que escarnecia das dificuldades com que o (nada popular) ofício de poeta se depara, quais sejam, o imprevisível horário de visita da Musa, a infindável tarefa de revisão de um poema ou a (nada rentável) escassez de leitores, para lembrar alguns exemplos.
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E encenava, em tom assumidamente humorístico que mau grado os opróbrios, "não desisto da poesia porque me agrada ser o poeta mais popular em Santo Tirso": "Certa vez, pelas piores razões, encontrava-me perdido, de carro, numa qualquer artéria daquela cidade quando abrandei num qualquer semáforo (também ele perdido) perguntando a direcção do hospital a uma desconhecida (também ela perdida?), junto a uma passadeira: "Eu digo-lhe onde [fica] o hospital mas não é o poeta João Luís Barreto Guimarães? Bem-vindo a Santo Tirso!"."Quais são as probabilidades disto acontecer", prosseguia eu, num registo burlesco: "Como a única outra pessoa com quem contactei na cidade não me identificou [...], sou forçado a concluir que somente 50% dos locais me reconhecem, o que ainda assim faz de mim um poeta extremamente popular em Santo Tirso. Trata-se de uma responsabilidade extremamente elevada que me coloca, de pedra e cal, no pódio da popularidade local. Em primeiro lugar, os jesuítas da Casa Moura; em segundo, os limonetes; e logo, logo a seguir, os meus poemas. Tudo coisas de comer".
Uma escrita deste tipo - até pela repetição do advérbio "extremamente", por exemplo - pressupõe um código de leitura entre autor e leitor, em que o primeiro assume que o segundo percebe que aquilo que está a ser dito - entre hipérboles e subentendidos - é exactamente o contrário daquilo que o autor pensa. E, mesmo se a mutilação da crónica lhe rouba aqui algum contexto, a coda - lembrando o verso "Ó subalimentados do sonho/ A poesia é para comer!", de Natália Correia - tem o condão de a recolocar, sem qualquer margem para dúvidas, sob o signo da ironia. Ou, até, da auto-irrisão.
Ora, um leitor - presumo que de Santo Tirso - escreveu-me há dias um e-mail tão lacónico quanto sincero, irado pelo facto de eu me ter intitulado de poeta mais popular da sua terra: "Este texto publicado no JN no último dia 18 despertou a minha curiosidade só pelo seu título. Logo, há que pesquisar e averiguar. Foi o que fiz e o resultado foi publicado no Jornal de Santo Thyrso do último dia 12, cuja leitura aconselho. Porque detesto a mentira, decidi-me a repor a verdade. Perguntei a cerca de 40 pessoas se o conheciam e só duas o identificaram mas... como cronista do JN. Admira-me como foi possível aquele Jornal ter publicado um auto-retrato de tão baixa qualidade. Permita-me só um conselho: nos graus dos adjectivos o uso de "o mais" exige muita ponderação. Aplicá-lo obriga a conhecer todo o universo do adjectivado. Não posso crer que conheça todos os poetas populares de Santo Tirso. Por favor dispense-se de me responder. Apresento-lhe os meus cordiais cumprimentos. A. V.".
O ímpeto com que o leitor - que, notem bem, também é adepto de estudos científicos - se lançou à resposta, faria sorrir este "grande mentiroso", não se desse o caso da mesma encerrar em si mais um sintoma da alarmante iliteracia que grassa em Portugal; A.V. - prosador suficiente, leitor confesso de jornais, ele sim, quiçá, o poeta popular mais popular de Santo Tirso - não foi capaz de reconhecer na minha crónica o artifício retórico da ironia, esse secular efeito de dissimulação que consiste em dizer exactamente o contrário daquilo que se pensa. O que me lembra o estudo reportado há uma semana pelo JN, que informava que "61% dos doentes não [entendem] o que o médico diz" - e não se referia a médicos cubanos!
Há dias debati com Manuel Alegre, na Feira do Livro do Porto, o tema "Literatura em Censura" e fazendo a apologia da Educação, insinuei que o Poder gosta de manter os cidadãos indiferenciados, ignorantes, iletrados porque são esses quem menos exigem. Na plateia estavam quatro ou cinco políticos, mas espero que o recado tenha chegado a muitos mais porque, desta vez, o auditório estava repleto de leitores. Manuel Alegre teve imensa sorte em ter sido convidado comigo.