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No momento em que escrevo, o corpo da rainha Isabel II atravessa a Escócia a caminho de Edimburgo. As exéquias da mais antiga e nobre chefe de Estado europeia - europeia no sentido da História e não no sentido de Bruxelas - prolongam-se até à próxima segunda-feira. É quase um justo momento operático wagneriano, com um prólogo e várias jornadas. Setenta anos de reinado representam um movimento de gerações único. Isabel assistiu a praticamente todo o século XX porque foi muito cedo chamada ao serviço público. Viu passar governos sobre governos, lá e por todo o Mundo. Viveu as primeiras duas décadas deste, até agora, tão absurdo século XXI com a mesma serenidade e com a mesma autoridade de sempre. Até ao penúltimo dia de vida, em Balmoral, quando recebeu a nova primeiro-ministro de Inglaterra. Passaram todos, de Churchill a esta infeliz Truss, e Isabel ficava e observava. Como observava o Mundo com o seu refinado humor inteligente e austero. Não teve grande sorte com a família. Mesmo aí, ergueu-se sempre acima da circunstância e da vulgaridade. Não é preciso ser monárquico para reconhecer nesta Grande Mulher o símbolo de uma maneira de servir que inexiste, há muito, antes do seu desaparecimento físico. Nunca me interessou - e julgo que a ela também não - qualquer dimensão cor-de-rosa da monarquia que personificava. Um "tom" acentuado aquando da breve passagem de Diana Spencer pela família, e que um saloio e oportunista Blair cavalgou como pôde. A rapariga nunca esteve à altura daquilo para que tinha sido convocada pela vida, como escreveu Agustina. Infelizmente, nem tão-pouco alguns de sangue real. Mas Isabel colocou-se permanentemente acima disso. Combinou, com rara sensibilidade, razão e inteligência, tradição e "modernidade" sem nunca transigir no essencial. Aliás, outra coisa não seria de esperar de alguém que, ainda muito jovem, andou a pé pelas ruínas de Londres bombardeada pela aviação nazi. Esta gente que governa o Mundo não existe perto dela senão como ficção, e da má. Olhe-se, por exemplo, para a palhaçada em curso num Brasil há duzentos anos independente disto. Por triste coincidência, o nosso chefe de Estado estava no meio dela no dia em que Isabel nos deixou. Depois, é só comparar o incomparável e o impensável em que tudo, por todo o lado, se encontra. Isabel fazia evidentemente parte da minha paisagem desde sempre. Da primeira vez que estive em Londres, sozinho, com dezasseis anos, passava o jubileu dos vinte e cinco anos de reinado. Tive então o tempo e a paciência que já não tenho para tudo absorver. Isabel é morta. Que o seu espírito luminoso possa continuar connosco.
o autor escreve segundo a antiga ortografia
*Jurista
