Ítaca - à espera de Ulisses
Há cerca de um ano, tive o privilégio de testemunhar em Bruxelas, a convite do deputado europeu Rui Tavares, o lançamento do "Projeto Ulysses": uma parceria que envolve a Grécia, a Itália, a Espanha, Portugal e a Irlanda, e se propõe denunciar as assimetrias de desenvolvimento que têm vindo a dilacerar uma União Europeia esquecida do valor da solidariedade que lhe garantiu o sucesso no passado e lhe conferiu um estatuto de exemplaridade ainda reconhecido universalmente. Entretanto, agravou-se a distância entre o centro e a periferia e deixou-se crescer a desconfiança entre os povos europeus para níveis incomportáveis.
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Em alternativa a essas políticas dominadas pela obsessão com os equilíbrios orçamentais que apenas contribuíram para o empobrecimento dos cidadãos e para aumentar os problemas financeiros dos países submetidos ao receituário da austeridade, condenando a economia europeia à estagnação, o "Projeto Ulysses" propôs-se um desígnio ambicioso: "o relançamento da Europa a partir do Sul". Tratava-se de inventar outro paradigma de desenvolvimento, assente na ideia de um "novo contrato político, social e económico, ambientalmente sustentável". Pretendia-se formar uma aliança estrategicamente orientada para reconduzir ao centro da construção europeia os desafios da coesão social e territorial, a criação de novos "polos de desenvolvimento", o combate à corrupção, o reforço da democracia e a abertura a novos modelos de governabilidade.
Um ano depois, apoiado no seu grupo do Parlamento Europeu - "Os Verdes" h e com as eleições europeias no horizonte, Rui Tavares apresentou um novo partido que reivindica o seu lugar "(...) no meio da Esquerda". Está aprovada a sua declaração de princípios, foi adotada uma papoila como símbolo e já tem nome: "LIVRE". O seu fundador assume como desígnio "a procura e a realização de convergências abertas, claras e transparentes, para criar uma maioria progressista capaz de criar uma alternativa política em Portugal e na Europa". Rui Tavares reconhece que "sem democracia europeia não há solução para a crise que estamos a viver". E é a consciência aguda desta incontornável realidade que determina a necessidade de traçar uma clara demarcação à sua esquerda, face ao Bloco e ao Partido Comunista, para os quais, logicamente, a criação do novo partido é especialmente inquietante.
Muito se tem especulado sobre a "aparição" da nova formação partidária e até se registaram algumas deploráveis insinuações difamatórias, sem classificação. Parece ocioso discutir se o "LIVRE" disporá ou não de espaço político no atual espectro partidário. O que importa é que as ideias e propósitos anunciados - "uma maioria progressista capaz de criar uma alternativa política em Portugal e na Europa" - ecoam de vários quadrantes em múltiplos registos, incluindo as iniciativas recentes do fundador do Partido Socialista, Mário Soares. O que importa é que estas ideias façam o seu caminho. Que o façam dentro ou à margem dos partidos é uma questão secundária que os próprios, todavia, não devem descuidar.
Terminada a guerra de Tróia, Ulisses iniciou a longa e atribulada viagem de regresso ao seu reino de Ítaca, onde Penélope o esperava, resistindo ao assédio dos numerosos pretendentes ao trono que, após tão demorada ausência, a davam já por viúva. Quando Ulisses desembarca finalmente em Ítaca, disfarçado de mendigo, apenas Argus, o seu velho cão, imediatamente o reconhece. Mas logo vai reencontrar os seus amigos e aliados que o irão ajudar a triunfar sobre os seus pérfidos rivais e assim merecer o favor dos deuses para recuperar o reino e pacificar a ilha.