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No início de novembro de 2024, uma mulher idosa ligava incessantemente para o 112. O marido, com 86 anos, estava inanimado. Os vizinhos terão tentado contactar o INEM, e o filho em Coimbra, alertado pela mãe, também.
Durante cerca de uma hora, ninguém os atendeu. Moravam a cerca de 1,5 km do hospital de Bragança. Estavam a uns minutos da urgência e, no entanto, a uma eternidade da resposta. Quando foi acionado um meio do INEM, já era tarde demais.
Tomei conhecimento da história através do seu filho. Até hoje ninguém lhes explicou a razão da falta de assistência. A esposa veio a falecer cerca de três meses depois, no final de janeiro. A partida do marido foi um acontecimento brutal na sua vida. Os impactos, direto e indireto, destes terríveis eventos possuem consequências ásperas e estão bem presentes nas suas famílias. Os seus efeitos perduram para sempre.
No dia 4 de novembro, mais de metade das chamadas realizadas para o INEM não foram atendidas e houve períodos em que a taxa de abandono foi de cerca de 84%. Isto é, menos de duas em cada dez chamadas foram atendidas.
As chamadas que chegaram a ser atendidas tiveram um tempo médio de espera de 26 minutos (imagine-se qual foi o tempo máximo, sublinhando que se trata de situações urgentes) e, mesmo após as chamadas de “callback” efetuadas, 1571 chamadas nunca foram alvo de retorno.
Mil quinhentas e setenta e uma chamadas urgentes, de pessoas desesperadas. Uma estimativa indica um eventual abandono de até 467 chamadas de prioridade máxima, possivelmente correspondentes a situações que necessitavam de assistência muito urgente por parte de meios de socorro altamente diferenciados.
Entretanto os inquéritos multiplicam-se, para perceber afinal o que aconteceu de diferente nesta greve, das múltiplas que existiram no passado e que não tiveram estes efeitos.
Porque é que a capacidade operacional do Centro de Orientação de Doentes Urgentes não foi devidamente acautelada?
Foi verificado que os pré-avisos das greves dos trabalhadores do INEM, neste período, circularam pelos gabinetes dos membros do Governo na área da saúde. “Circularam”.
Enquanto se analisam as questões legais, há alguém que se esquece das suas responsabilidades políticas. Bem sei que Bragança fica longe de Lisboa, porém. Os filhos deste casal desesperam por conhecer o que realmente se passou, e que acabou por levar ambos os pais.
Terão sido, aparentemente, pelo menos onze os portugueses que faleceram neste período. À espera.
Confiaram no sistema público de resposta, acreditaram em quem liderava. Mas, no fim, foram abandonados à sua sorte. E, no entanto, após mais de quatro meses, ninguém assumiu esta responsabilidade, e refiro-me à dimensão política. O que se verifica é que existe quem goste de comentar a situação, quem aponte o dedo a todos os outros, quem se distancie dos problemas, mas ninguém que assuma que o Estado falhou.
Existe quem espere que este número sejam apenas uns algarismos num qualquer documento, rapidamente esquecido, oculto num relatório jurídico, furtivo em tecnicidades.
Mas este número corresponde a onze pessoas. Onze famílias. Onze. Nem sempre fazemos tudo bem, mas há algo que distingue os verdadeiros líderes, que assumem as suas responsabilidades políticas, daqueles que se refugiam nas sombras. Alguém não esteve à altura do cargo que assumiu.
Chegaram com bandas de música e foguetes. Vão sair escondidos, de noite. Este casal de Bragança faleceu. Já não está aqui. Mas não o vamos esquecer. Os portugueses não esquecerão.
*Médico do SNS e professor universitário