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As declarações de ontem do Secretário de Estado norte-americano a respeito da Ucrânia traduzem-se, definitivamente, na internacionalização daquilo que começou interno. E promovem a um novo patamar o confronto Estados Unidos-Rússia.
Na Ucrânia, com efeito, digladiam-se dois destinos que até poderiam ter sido harmonizados mas que agora combatem cada um em sua trincheira. Por um lado, a opção pró-russa; por outro, embora talvez de forma mais difusa, a opção pró-europeia, ou pró-União Europeia.
Cada uma destas escolhas se entrecruza na História, geografia e política da Ucrânia. E cada uma assume uma reivindicação absolutista: ou tudo, ou nada.
O caldo está por conseguinte entornado, havendo que encontrar um qualquer desenlace, nunca o ideal, sempre o menos mau.
Até agora, o Presidente Ianukovitch não conseguiu fazer prevalecer o seu poder sobre o das diferentes oposições. Tentou a força bruta, tentou a cedência e a negociação (logo rejeitadas), ameaça voltar à força, até militar. As oposições, essas - porque se trata de várias oposições -, já conseguiram aquilo que por ora pretendiam, a saber, a intervenção de terceiros em favor das suas reivindicações.
Porém, se até agora a balança de poder estava relativamente equilibrada, a entrada em liça dos Estados Unidos tem, creio, alguns efeitos de peso. Por um lado, mesmo no contexto estritamente regional, confirma que a UE não tem, por si, capacidade política de influência determinante. Em segundo lugar, acentua a clivagem que separa EUA de Rússia, bem confirmada no caso sírio e agora no impasse ucraniano. Em terceiro lugar, antevendo-se que a prazo a Rússia "perderá" esta batalha ucraniana, transfere para a União Europeia o custo da vitória: porque, prevalecendo a "Europa" sobre a "Rússia", é certo que a factura será paga pelos europeus.
O curioso é que fomos assistindo inicialmente a um leilão e, depois, a uma fase verbal belicosa (ainda não encerrada). Um leilão inicial, porque para convencer a Ucrânia tanto a UE como a Rússia prometeram, cada uma, que tudo fariam para garantir a prosperidade do país. Uma fase belicosa a seguir, traduzida em declarações agressivas de parte a parte. E chegamos agora a uma terceira fase, mais dura, em que os Estados Unidos decidem o seu jogo e trazem à superfície aquilo que, desde sempre, esteve em jogo (muito mais do que a felicidade dos ucranianos): a Ucrânia é, no xadrez geopolítico, uma peça demasiado apetecível e importante.
Trata-se, assim, de criticar pela enésima vez a ingerência norte-americana, bem expressa na forma como, ostensivamente, o Secretário de Estado John Kerry recebe no estrangeiro aqueles que se opõem a Ianukovitch e o querem derrubar a partir da rua? Nem tanto, porque antes, e até de forma mais directa, a Rússia tinha mostrado ao que vinha, nada recomendável.
Mas o certo é que, para variar, entre pressões menos benignas (da Rússia) ou mais benignas (de UE e EUA), corre o povo ucraniano o risco de confirmar a expensas próprias a bem conhecida afirmação: quando o mar bate na rocha, quem perde é o mexilhão. Bom, é verdade que o povo diz a coisa de uma forma mais bruta, mas ficava-me mal repeti-la aqui.
