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Jacinta acordou maldisposta, pois o seu senhorio é deveras rigoroso com o prazo para receber a renda, ao contrário do seu patrão com o de pagar salários. E pior ficou quando leu no JN que o departamento do Ministério Público vocacionado para combater a alta corrupção em Portugal está com dificuldade em recrutar procuradores devido aos preços da habitação em Lisboa. Se profissionais com um salário de pelo menos 5502 euros se retraem com o custo das casas, como se sentirá ela que recebe cinco ou seis vezes menos, tarde e a más horas, e paga renda neste Porto também tão inflacionado?
Embora não seja de desistir facilmente, é a fazer contas ao rumo da sua vida que Jacinta bate a porta de casa e desce as escadas, para novo dia de labuta, e dá consigo especada à porta sempre fechada do apartamento do rés do chão. Lá dentro estão três espaçosos quartos, uma sala que dava um salão de festas, a cozinha com uma banca de pedra verdadeira, uma casa de banho com exposição solar durante boa parte do dia, corredores com paredes forradas a madeira, mais um terraço de meter inveja à vizinhança.
Quem olha de fora não adivinhará, mas Jacinta sabe que ali dentro já não mora ninguém há muitos anos. A renda que poderia valer este apartamento no centro do Porto não fará falta ao proprietário nem aos herdeiros, que têm, nesta e noutras zonas da cidade, inúmeras casas, umas arrendadas, outras devolutas, muitas a precisar de obras.
E, no entanto, Jacinta recorda-se que caiu o Carmo e a Trindade, por suposta ameaça ao direito de propriedade, quando o Governo anterior propôs substituir-se aos proprietários na reabilitação de imóveis devolutos para os lançar no mercado de arrendamento e, assim, ressarcir-se do investimento e facilitar a vida a quem não tem casa própria; e, no entanto, Jacinta saiu à rua e avistou operários de outro continente, que a direita energúmena aponta como causa da crise da habitação em Portugal, a construírem um novo prédio com dezenas de apartamentos; e, no entanto ainda, Jacinta lembra-se de ter escutado há dias o novo ministro da Habitação a apresentar uma estratégia a que chamou "Construir Portugal" e que dá prioridade a uma alteração da Lei dos Solos para ocupar com nova construção os solos rústicos.
Jacinta respira fundo, a caminho do trabalho, e ocorre-lhe a urgência de receber o salário, pagar a renda e, apesar de não acreditar em milagres, desconstruir este Portugal devoluto de sensatez e justiça.