Corpo do artigo
A Rua do Bonjardim fez parte da vida do "Jornal de Notícias" entre a década de 1970 e 2023. Por conseguinte, fez parte da vida de todos os jornalistas que por estas páginas passaram e continuam a passar.
A Rua do Bonjardim é a rua do Ginjal que foi restaurante típico de qualidade antes de se perder nas agruras do abre e fecha que marca muitas das moradas de restauração. A Rua do Bonjardim é a rua da Conga quando a Conga ainda era uma tasca onde os pés se nos colavam no chão cansado de passagens esfomeadas sobre salpicos de óleo.
A Rua do Bonjardim é a rua da esquina do defunto Big Ben dos jantares tardios entre vidas noturnas mais ou menos confessáveis. A Rua do Bonjardim é a rua da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, ainda que o número de polícia tenha escorregado para a rua com que faz esquina. A Rua do Bonjardim é aquela metade de cima triste, de casas velhas e abandonadas, aquela que nos recordava que ali era, antes de mais, a Estrada de Guimarães.
A Rua do Bonjardim é a rua onde o meu avô marceneiro mobilava apartamentos. A Rua do Bonjardim é a rua onde meninas e meninos procuravam sobreviver depois do sol posto. A Rua do Bonjardim é a rua onde fechou a Caverna, a rua onde fechou o D. Quixote, a rua onde fechou a mercearia simples, a rua das farmácias mais próximas, duas, a rua onde estacionávamos de borla, a rua onde já houve fábricas, a rua do Pretinho da Índia e do bacalhau à porta da Casa Lourenço.
A Rua do Bonjardim é a rua da Regaleira e do Antunes. Ambas continuam a matar-nos a fome, mas em instalações que perderam as velhas madeiras e a decoração tradicional, em espaços crus com pouca identidade para lá do que fumega no prato. Bem-haja, essa parte mantém-se. Foi ao Antunes que fomos jantar, dias depois de a Time Out Global ter anunciado a sua lista das ruas mais cools do Mundo e nela dar pódio ao Bonjardim, num terceiro lugar que nos colocou a todos um ar de tacho na cara.
Porque, para quem a conhece desde sempre, a Rua do Bonjardim é um risco de 1,6 km no mapa, uma rua simples, muitas vezes suja, em muitas noites triste e escura, que nunca se frequentou por especial prazer. Era uma rua prática, com tudo o que precisávamos na espuma dos dias de trabalho. E passou, a dada altura, a ser a rua da casa de um amigo de muitos de nós, onde, depois de jantar, acabámos a debater esta coisa de estarmos na terceira rua mais cool do Mundo e a erguer os ombros. Garante a nossa anfitriã que isso será porque, na parte de cima, ainda se vai à mercearia de bairro, ainda se cumprimenta um ou outro vizinho, ainda se está no silêncio apesar da proximidade do centro, numa rua que tem, para baixo, restaurantes, cafés trendy, espaços de cowork, o teatro (ufa), enfim. Para baixo, é uma rua como todas as outras destas nossas cidades turistificadas que se assemelham cada vez mais. Para cima, vive (ainda) alguma gente. Para baixo, o pernil e as rabanadas do Antunes continuam como o algodão, até ver. Porque já se sabe o efeito destas listas para turista ver. Jantemos enquanto ainda podemos.

