Oataque lançado contra o "Charlie Hebdo" é atípico. Não, com certeza, por se tratar de um ataque terrorista. Não, também, pelo número de vítimas. É atípico, isso sim, por ter ocorrido numa grande capital europeia; por ter sido executado de forma muito profissional; por a sua motivação ser a destruição de um órgão de Comunicação Social; e por os atacantes terem alvos precisos em mente (jornalistas), que queriam eliminar e que efetivamente eliminaram.
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O resto é mais ou menos conhecido de todos. Foi lançada uma caça ao homem gigantesca e, sexta-feira à tarde, foram mortos os irmãos Kouachi mais Amedy Coulibaly, este noutro local.
Imaginemos, porém, que éramos marcianos e não percebíamos nada do que estava a acontecer. É possível que não fosse toda esta violência sangrenta a marcar-nos, mas mais aquilo que se lhe seguiu e, em lugar de destaque, a forma como (a partir das redes sociais) tantos milhões passaram a identificar-se com a publicação atacada. Mais interessante, muitos dos que se assumiram como "Charlies" não saberiam com certeza, se perguntados, explicar com clareza porquê.
Afinal, a questão do "porquê" não interessa nada, ou pouco. Um gesto de identificação simbólica; de solidariedade; de defesa da liberdade de Imprensa; de repugnância pela violência que levou à morte de polícias, de cartoonistas, de responsáveis editoriais e de outros que tiveram o terrível azar de a sua vida se ter cruzado com assassinos.
Podia ser assim? Podia, mas era simples de mais.
Imediatamente houve quem se dissesse Charlie mas criticou outros que diziam o mesmo (com que direito está Vossa Excelência do lado do bem?); quem se afirmasse anti-Charlie, porque era chique; quem lançasse seus hipócritas, porque não houve reações similares quando morreram jornalistas na Síria ou na Faixa de Gaza?; quem achasse mal tudo isto, claro, mas a verdade é que os gajos se puseram a jeito; quem dissesse que noutras ocasiões muitos não tugiram nem mugiram e agora só choraram lágrimas de crocodilo porque se tratava de jornalistas, e de Esquerda (dois defeitos graves acumulados); quem dissesse que só um jornalista a sério, e que arriscasse a vida, tinha o direito de "ser" Charlie; quem dissesse que "eu ne suis pas Charlie, eu suis Ahmed", porque esse é que era o herói porque tinha morrido a defender aqueles que atacavam o Islão; quem invocasse o politicamente correto para não ser coisa nenhuma, "que eu sou muito macho, pá!", etc.
Como é evidente, também houve quem ensinasse que isto é tudo uma aldrabice e que nós somos uma cambada de bestas manipuladas. Que não foram nada os dois manos. Que, mesmo que tenham sido, eram agentes da CIA ou da NATO ou de Israel, eliminados para não poderem dizer a verdade.
Não vejo mal nenhum nisto tudo. Se um dos leitores se disser anti-bosta, é claro que não passa sequer um dia que não apareça alguém a criticar essa atitude politicamente correta e supinamente hipócrita; que até compreende o facto de a bosta, ao ser atacada, ter que cheirar mal em legítima defesa; e que no limite, sopesados todos os factos e elementos de análise, uma pessoa decente só pode ser a favor da bosta.
Eu sou José Alberto, mas não me importo nada de "ser" Charlie se com isso apoiar de forma mínima uma causa que considero fundamental (a liberdade de Imprensa), sem ter que fazer uma tese de doutoramento sobre o assunto. Também não me perturba nada que alguém "seja" Charlie sem saber o que é o "Charlie Hebdo".
Por uma vez, podíamos ser menos complicados. Mas, que querem, é a liberdade de expressão. Aceita tudo e todos. Quando tombaram as vítimas deste ato de barbárie, senti que estava perante uma vitória do ódio sobre a liberdade de expressão e de Imprensa. Hoje, já não diria o mesmo, ou procuraria distinguir de maneira mais fina.
Charb, Wolinski, Ahmed e todos os outros foram assassinados. Aí, perdemos, perdemos muito, e perdemos de vez. Porém, de alguma forma, a sua morte desencadeou uma explosão da liberdade de expressão, até da mais revoltante. Pareça muito embora paradoxal, admitirmos a liberdade de expressão que nos parece estúpida, insultuosa, obscena, idiota ou cavalar é a única forma de realmente a mantermos viva e de boa saúde.
É que, se eu quiser ouvir alguém com quem estou sempre de acordo, ponho-me a falar em frente ao espelho.
Descansem, ainda não me aconteceu.
* PROFESSOR UNIVERSITÁRIO