Todos os anos, por esta altura, o frade do "Auto da Barca do Inferno" volta a entrar em cena. Não traz uma mulher pela mão, nem espada e broquel na outra, mas chega confiante e bailarino, de consciência tranquila, convencido de que a batina tudo absolve. Na missa, prega bondade e misericórdia, sabe de cor os cânticos e as orações, comunga o corpo de Cristo, acende uma vela pelos pobres e enfermos, deixa uma moeda no cestinho. Depois, sai à rua, olha de lado para o imigrante que busca casa, paz ou trabalho e finge que não vê o pedinte a dormir no chão, porque a cama onde se deita não é de palhinha, é de cartão. A barca segue ornamentada de luzes e boas intenções, e ele, como tantos, acredita que o manto lhe basta para garantir a salvação.
Enquanto o frade navega na própria vaidade, há barcas que não chegam a porto algum, perdendo nas ondas os tantos que tentam atravessar os mares para chegar a terra firme e segura, que isto de dividir águas ao meio não é para todos. No ano passado, mais de 3500 pessoas morreram ou desapareceram no mar, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, que pediu ações urgentes para evitar mais perdas. E os relatos de 2025 confirmam a continuidade e a gravidade da crise migratória marítima, com múltiplos incidentes trágicos e rotas perigosas - a Organização Internacional para as Migrações apontou para 1400 migrantes mortos ou desaparecidos no Mediterrâneo até outubro.
Dizem os textos bíblicos e históricos que o menino que repousa nos presépios das nossas casas e igrejas - e que haveria de abrir os braços aos doentes, aos pobres e aos oprimidos - foi também ele próprio um refugiado. Fugido no Egito com a mãe e o pai por causa de um rei que era mau. Mas muitos dos fiéis que o adoram, o têm como exemplo e o invocam até para justificar a intolerância pela diferença, em nome de uma suposta superioridade moral ou geográfica, fecham portas e erguem muros no dia a dia. Ao refugiado, ao imigrante, ao pobre, ao gay, ao transgénero, ao idoso, à pessoa com deficiência. Deixam no altar o acolhimento que o livro pelo qual se guiam insta a que se pratique.
Neste Natal, como nos outros dias do ano, independentemente de credos e fés, pratiquemos a bondade. Dentro e fora de casa. Ao redor da mesa. Com quem passa o dia na cozinha para que haja uma ceia farta. E com quem não vai ter mesa. Como o condutor da Uber que não é de cá, mas leva os de cá do emprego para casa a tempo da consoada.

