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As "novidades" sobre a frente ucraniana vão-se acumulando, e têm sido sempre más novidades. Goste-se ou não dos factos, foram os Estados Unidos e a UE a contribuírem para a desestabilização política da Ucrânia quando apoiaram, ativamente e às claras, a queda do anterior presidente ucraniano. Esse foi um momento charneira, e o que desde então tem acontecido à Ucrânia é consequência direta ou indireta daquilo que, afinal, até pode (olhando para trás) parecer um facto menor.
A Rússia olha para a sua vizinha ucraniana como espaço fundamental para a sua própria segurança. Não podemos alegar que não sabíamos, porque esta "realidade" não nasceu com Vladimir Putin, é uma constante firme da política externa russa. Ora, no passado recente tivemos o bom senso de, por exemplo, não dar andamento ao pedido de adesão à NATO que a Ucrânia anunciou, assim como agora temos tido o mau senso de acenar com essa hipótese. Creio, em consequência, que sopesámos todos estes dados imateriais no momento de tomar decisões, o que nos levou a cometer erros de palmatória na questão ucraniana.
Raciocinemos um pouco com a cabeça fria. O que aconteceu desde que em má hora nos lembrámos de derrubar um indivíduo que, sendo fraca peça, tinha sido eleito democraticamente? É fácil fazer as contas, infelizmente. A Ucrânia perdeu a Crimeia, e aquilo que o urso russo morde dificilmente larga (que o diga a Geórgia). A Ucrânia perdeu depois o seu "povo", porque a sua população russófona não vai esquecer que está a ser bombardeada pelo exército ucraniano e a população dita "ucraniana" de raiz nunca esquecerá que os russos estão no seu território e lhe tiraram a Crimeia. A paz na Ucrânia, mesmo que de fraca qualidade, também acabou, e ninguém tem o direito de pretender que não imaginava que um conflito grave se pudesse desenvolver a leste, com evidente intervenção russa.
Estamos, em síntese, lançados numa escalada em que nenhuma das partes está disposta a negociar ou se mostra sequer capaz de negociar.
Lembremo-nos no entanto que nestas coisas das "escaladas" é um pouco como no poker: costuma ter vantagem quem, considerando-o necessário, nunca tenha medo de jogar a cave. Só que, nesse plano, Putin joga em casa. As sanções já decretadas contra si demoram tempo a produzir efeitos, mas radicalizaram posições. Depois, o líder russo acredita mesmo que o futuro do "seu" país se joga na Ucrânia - e nenhum país europeu, sejamos francos, acredita que o "seu" destino se jogue ali, por muito que o afirme com a mão no coração. Em terceiro lugar, Putin não está condicionado por pruridos democráticos, ao contrário do campo que se lhe opõe, e este costuma ser um trunfo em situações de pré-conflito. Finalmente, a opinião pública russa ainda está do seu lado, seja por efeito de uma propaganda apocalíptica seja porque, afinal, Putin reflete o "sentimento" do seu povo. Veremos é quanto tempo esse estado de graça dura porque, quando os seus jovens começarem a regressar a casa dentro de caixões, a conversa será outra.
Do lado da União Europeia, há pelo menos uma fragilidade e uma força. A força é económica: o peso-pesado europeu, de mão dada com o peso-pesado americano, vai fazer sofrer a sério a economia russa e logo a seguir a população russa. Porém, nunca o esqueçamos, e nem sequer é uma crítica: estamos menos preparados do que a Rússia para o custo e os efeitos de uma guerra económica total porque, justamente, somos democracias.
Depois, a fragilidade. Não temos cave a sério para jogar, e concebe-se com dificuldade que os europeus decidam ir para uma guerra a sério, com mortos a sério, no Leste da Ucrânia. E isso, como é lógico, sente-se, cheira-se, no nosso discurso: numa guerra direta com a Rússia, até ganhávamos (com os Estados Unidos, claro), mas corríamos o risco de nos suicidarmos com a vitória.
Mas, e então? Que cartas temos agora na mão? Duques? Porque deixámos a situação chegar onde chegou? Porque não temos tido mestria, sem sequer sermos derrotados, para acalmar um jogo que não temos vontade de jogar até ao fim?
Há muitas respostas, podendo todas ser válidas. Mas há uma muito importante. A Rússia é um Estado, dirigido com mão de ferro por Putin. Nós (a União Europeia), somos uma organização internacional que continua a fingir que é um Estado.
Esta ambiguidade paga-se, e paga-se caro.