Seguir a atualidade por estes dias não tem sido tarefa fácil. Os acontecimentos sucederam-se de tal forma que a respetiva cobertura mediática se entrecruzou, fazendo com que os focos apontados sobre a espuma de cada dia criem sombras que escondem muito do que importa. O caso "Charlie Hebdo" foi obviamente a bomba da semana, açambarcando o espaço público e empurrando a política nacional para fora da agenda.
Corpo do artigo
Sabe-se que, em política, há que aproveitar o momento, quer para passar uma mensagem à boleia de um sentimento coletivo que possa ter emergido, quer para desviar os holofotes daquela fragilidade que ameaçava incomodar. E esta não foi uma semana parca neste jogo de sombras. Das visitas do partido socialista de Costa à crise nas urgências hospitalares, da audição do ex-contabilista do GES ao atentado no "Charlie Hebdo", a força dos factos toldou a análise. Pensarão os leitores que é para descobrir algumas dessas sombras que existem os artigos de opinião. Tendo a concordar.
O chocante massacre do "Hebdo" uniu uma nação, um continente mesmo, num sentimento de revolta. Sejamos ou não Charlie, não há argumento válido para justificar o assassínio daquelas pessoas. Ponto. Mas, como em tudo na vida, há também o reverso da medalha, aquilo que fica na sombra e que tem de ser discutido. Primeiro, as caricaturas, elas próprias. Acredito firmemente na liberdade de expressão e sinto até atração pela sátira, mas muito francamente não me entusiasmo com os excessos dos "cartoons" do "Hebdo". Aquilo que é suposto caracterizar a sátira é justamente a capacidade de extremar a crítica sem invadir o terreno da ofensa. Pois não foram poucas as vezes em que o jornal francês ultrapassou este limite.
Sem perder tempo, alguns justiceiros vieram de imediato dar, também eles, a sua pincelada nas mesquitas, um pouco por todo o lado, num gesto de expressão que, lá está, vai para além dos benefícios da liberdade. Mais ousada, Marine Le Pen cheirou a oportunidade e disparou não balas mas propostas, daquelas que ferem ou matam a prazo. A retirada da nacionalidade francesa, a pena de morte, a suspensão de Schengen, enfim todo um arsenal ideológico em que, sublinhe-se, muitos franceses se revêm, a avaliar pelos recentes sucessos eleitorais da filha de Jean-Marie. Ora aí está uma verdade inconveniente, bem escondidinha na sombra.
Com as atenções viradas para Paris e arredores, Francisco Machado da Cruz, antigo contabilista do Grupo Espírito Santo, lá foi ouvido no Parlamento à porta fechada, naquilo que parecia o cumprimento de uma formalidade. Pois a verdade é que as nove horas de audição permitiram confirmar que as contas do grupo foram de facto adulteradas intencionalmente em 2008. E que tal aconteceu, segundo o visado, por ordem expressa de Ricardo Salgado. Ou seja, Machado da Cruz devolveu a acusação ao antigo "dono disto tudo". E para que este detalhe não se perca na sombra, Ricardo Salgado, José Maria Ricciardi e o governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, serão de novo chamados a depor no Parlamento.
Entretanto, o líder do PS, António Costa, continuou o seu périplo pelas diferentes forças partidárias, visitando o CDS na última sexta-feira. Ora, justamente quando as páginas dos jornais e os noticiários televisivos foram tomados pelo "Hebdo", Nuno Melo, apesar da sombra, endereçou ao PSD um significativo recado: "O CDS sabe onde está e com quem está". A coligação, que nunca brilhou muito, parece agora estar a apagar-se.
Por fim, as urgências. Com a multidão a amontoar-se às portas dos hospitais, os pobres dos médicos e enfermeiros, insuficientes, não são capazes de escoar em tempo útil pacientes mais e menos graves. Ao fim de tantas horas à espera, não admira que haja mortes. Pois a notícia que vai passando na sombra é de que o Ministério da Saúde pretende, a partir de 1 de fevereiro, fechar à noite e ao fim de semana alguns dos centros de saúde do Alto Ave, Braga, Gaia, Espinho e Feira. É bom de ver que estas medidas, para além de voltarem a subtrair à população cuidados de saúde primários, vão atirar mais uns quantos para o inferno das urgências dos hospitais. Vá-se lá perceber!
* PROFESSOR CATEDRÁTICO DA UNIVERSIDADE DO MINHO