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Posso enganar-me, mas o que John Williams faz é felicidade. Música em jeito de entusiamo, ou isso em espelho - entusiamo em jeito de música. Entre um e outro, não há desarmonia em John Williams que caia para o desconsolo absoluto, mesmo quando compõe temas como o da Lista de Schindler.
No documentário mais recente sobre o compositor, disponível na Disney+, encontramo-lo velho, muito velho, mas com tal juventude criativa, tal forma inocente de explicar como escreve, que a súmula da experiência mais parece a súmula da simplicidade.
Quanto mais sei o que é fazer alguma coisa do nada, mais me fascino com quem faz a maravilha de tantas coisas de absolutamente nada. Mas fascino-me sobremaneira com quem cria com espartilho: no caso de John Williams, fazer música com códigos que a transcendem. Imagino que escrever para cinema seja uma prisão onde John Williams foi livre.
São dele as bandas sonoras de "Guerra das estrelas", "Indiana Jones", "Encontros imediatos do terceiro grau", "Parque Jurássico", "Sozinho em casa", até o tema de "Harry Potter" e o suspense icónico em duas ou três notas de "Jaws", entre centenas de outros exemplos, a maioria a convite de Steven Spielberg.
Quer dizer que, em tantos momentos, a música de John Williams, escrita com prazo e alegria (e esforço e talvez angústia bem disfarçada), esteve no centro emocional de histórias que confundimos com a nossa. Nesse sentido, a sua música mediou uma espécie de encontro entre nós e a nossa vida, se assumirmos que num bom filme nos mostra alguma coisa de nós mesmos.
Eu chamo a isto concorrência desleal. John Williams bem pode sentir as limitações libertadoras dos prazos, cachets milionários com que se preocupar, orquestras para conduzir, origens no jazz para estimar e tantas outras facetas da carreira, mas, sem as histórias que lhe deram, a sua música seria um pássaro sem poiso. Dito de outra maneira, sem ser um grande leitor, sem encontrar no enredo de outros o que este pedia de seu, John Williams não teria sido um grande compositor. Na verdade, sem ele, também as histórias não seriam um encontro tão belo.
No documentário vemo-lo a certa altura a conduzir os temas mais icónicos: levantada pelo entusiasmo de John Williams, a orquestra toca a alguns centímetros do chão. Nisto, suspeito de um roubo: a felicidade que ele fez só pode ser nossa. Mas é tanta a dádiva que lhe desculpamos o talento.
*O autor escreve segundo a antiga ortografia