Na morte de José Mário Branco as televisões e as rádios recuperaram entrevistas suas. Mais que qualquer elogio fúnebre, é a oportunidade de ouvir o próprio falar da vida, do Mundo e de si próprio, que melhor o retrata. Sobretudo se ele tem algo de relevante a transmitir. Como é o caso.
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Ele foi sempre assim. Só escrevia músicas e dava concertos se tinha algo de importante a dizer. E disse muito, nestas entrevistas agora recuperadas. Como disse tanto, em tantas outras que se podem facilmente revisitar graças à Internet, ou através das canções que compôs e cantou. Disse muito mais de si do que todos os testemunhos de amigos e conhecidos.
Percorrendo essas entrevistas, desde maio de 74 até ao ano passado, é surpreendente a sua liberdade, a sua radicalidade, a sua coerência e a fidelidade aos valores profundos que nortearam a sua vida. Sobretudo para quem o conhecia mal, como é o meu caso.
Percebe-se que ser livre não é fazer o que apetece, mas ser fiel aos valores em que se acredita. E não se deixar condicionar por ninguém, nem pela ditadura, nem pela Igreja ou por qualquer partido ou organização. Numa dessas entrevistas, afirma mesmo: "Eu vejo malta agora, na liberdade, que é muito menos livre do que eu fui na ditadura", que "aos vinte anos já são velhos, já só pensam na carreira...". Deixaram-se aprisionar pela miragem do sucesso, pela busca da notoriedade, do domínio sobre o outro, em desrespeito pelos seus valores profundos.
Na entrevista à RTP em 2018, porventura a melhor delas todas, reconhece que esses valores profundos lhe advêm da fé cristã em que militou, chegando a ser dirigente da Juventude Católica no Porto. Quando decidiu desertar fê-lo, diz, porque estava - e continuava a estar - "muito imbuído daqueles valores humanistas do cristianismo", segundo os quais os africanos também eram seus irmãos e não os podia matar.
Deixou a Igreja Católica quando percebeu que esta "estava feita com o regime" e achou que, no seu interior, não podia lutar pelos ideais em que acreditava. Da mesma forma deixou a "outra Igreja" para onde se mudou, o PCP, quando este o quis obrigar a ir para a guerra fazer política na frente de batalha. Foi deixando todos os outros partidos em que militou quando eles abandonaram as causas em que acreditava. Ou como ele preferia dizer: "Não fui eu que deixei os partidos, mas eles é que foram saindo de mim".
Ao longo do percurso encontrou a sua definição de liberdade: "É tu estares a exercer-te num sentido qualquer que tu desejas". E "quanto mais vais sendo, mais liberdade é". É a liberdade interior, que não se submete a nenhum poder, ou a qualquer outro objetivo que não seja cada um ser cada vez mais si próprio.
No anos 60 José Mário Branco, apesar de ter abandonado a Igreja, continuou muito mais próximo do Jesus Cristo que veio anunciar a Boa-Nova aos pobres, proclamar a libertação aos cativos e oprimidos (Cf. Lc. 4, 18-19), do que certos setores da Igreja Católica que então apoiavam e se submetiam à ditadura, metendo o Evangelho na gaveta.
Padre