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Na televisão, alguém anuncia a boa-nova: a criação de mais uma entidade que vai ajudar a salvar-nos de nós próprios. No caso, a criação da Ordem dos Nutricionistas. A partir de agora, é caso para dizer, nunca mais comeremos gato por lebre. Por isso velarão os nutricionistas encartados pela Ordem. Não basta parecê-lo. É preciso selo, da Ordem. Não basta que os cursos sejam avaliados, certificados e credenciados pelo Ministério do Ensino Superior ou pela Agência de Acreditação. Nada disso. Isso apenas garante que há uma formação de qualidade. Agora para se ser verdadeiramente nutricionista, é preciso o selo da Ordem. Só esses serão capazes de dizer o que devemos ou não comer. Um verdadeiro atestado de inutilidade à capacidade reguladora do Estado. Um processo que se tem vindo a multiplicar, nas mais variadas profissões. Quem paga a factura? Os jovens que para entrar na profissão têm de passar por um verdadeiro calvário de estágios, testes e exames. Mesmo que tenham uma formação bem melhor do que a dos actuais profissionais. Por detrás da retórica da garantia da qualidade dos serviços prestados está, quase sempre, esse propósito de preservar a posição dos que já estão instalados. Atributo que, frequentemente, é suficiente para lhes dar o estatuto de membros. Nós somos bons, sabemos o que fazemos. Os outros? Logo se vê.
No caso em apreço, a cereja em cima do bolo ainda estava para vir. Congratulando-se com a criação da Ordem, a representante dos nutricionistas fazia votos para que o Estado cumprisse, agora, a última parte do caderno de encargos: a colocação de um profissional em cada escola para velar que a comidinha dada aos nossos filhos seja dieteticamente equilibrada. O fundamento existe - todos sabemos dos problemas de obesidade que a irresponsabilidade dos pais tem permitido que se multiplique - mas será mesmo preciso um nutricionista por escola? Na sua falta de pudor, esta gente reflecte bem o problema deste país: a dependência do Estado e a teia de relações perversas e de equívocos que se estabelece à sua volta. O que, em última análise, muitos pretendem é um emprego de funcionário público, garantido, pago pelos impostos de todos. E assim, a máquina foi crescendo, desmesurada, impossível de pagar. Quando se fala na necessidade de repensar o papel do Estado, são também estas relações que estão em causa. Talvez sejam mais eficientes do que o Estado na garantia da qualidade da formação. Privatizem-se essas competências e evitem-se redundâncias. Ao Estado competiria evitar que essas instituições, sob os mais variados pretextos, tivessem, tão-só, um escopo corporativo. A forma acrítica como o Estado tem apadrinhado a sua proliferação, mantendo tudo o resto, não é um avanço mas um retrocesso, aumentando a burocracia e as barreiras à entrada dos jovens no mercado de trabalho.