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14 de fevereiro de 1974, Tribunal de S. João Novo, Porto.
Há 50 anos terminava um julgamento especial no Tribunal Plenário do Porto. O pe. Mário de Oliveira (1937-2022) era condenado a um mês de prisão, com pena suspensa.
A Censura cortava as notícias sobre o julgamento iniciado em outubro de 1973. Noticiavam os figurantes e quase nada do que diziam. A não ser a acusação: crime contra a segurança do Estado através de homilia feita, na Igreja de Macieira da Lixa, a 1 de janeiro de 1973, Dia da Paz. Por condenar “a guerra do Ultramar” e incentivar os jovens a desertarem.
Além da acusação e das suas testemunhas, a Censura deixava passar que a tarde estava amena e que o sol entrava pelas janelas do tribunal. De resto, cortes quase totais. Nada de inesperado.
Por isso, oito jornalistas (entre eles M. A. Pina) elaboram um plano para cobrir o julgamento. Revistados à entrada da sala de audiências, não podem levar gravador. Só bloco de notas e caneta. Quatro equipas de dois jornalistas revezam-se, sessão a sessão (33 no total). Em segredo. Poucos sabiam da preparação do livro. Nem o réu, nem o seu advogado.
O plano jornalístico estava articulado com a Afrontamento e a Tipografia Nunes, na Rua da Alegria. No final de cada sessão, cabia aos jornalistas escalonados deixar, na caixa de correio da tipografia, de madrugada, o texto manuscrito. Em segredo. Na manhã seguinte, os tipógrafos compunham cada sessão e os cadernos do livro eram compostos secretamente.
Das várias sessões transcritas, sentem-se os momentos de tensão, a ironia, as dificuldades do advogado em falar com o réu quando estava detido na prisão política de Lisboa: tendo procurado visitar o réu na cadeia de Caxias duas vezes, de ambas fui impedido.
Este foi um processo emblemático no estertor do regime. Exemplo gritante de intolerância da ditadura. A par dele, esteve o processo das Três Marias (Isabel Barreno, Velho da Costa e Teresa Horta) sobre o livro “Novas cartas portuguesas”. No dia seguinte à sentença, livro pronto: “O segundo julgamento do padre Mário”. Quase 7000 exemplares! “Acabou de imprimir-se no dia 15 de fevereiro na Tipografia Nunes, Lda, Porto”, lê-se no cólofon.
Pouco depois chega o 25 de Abril. A Censura não tem tempo de apreender qualquer exemplar.
Hoje com intolerâncias e guerras, contra os direitos humanos, vale a pena lembrar o caso do pe. Mário. Exemplos do poder radical mostram que o livre pensamento e a liberdade de expressão correm sérios riscos. Vamos deixar que cortem o oxigénio da democracia?