Há coisas que de tanto se repetirem nos tornam indiferentes. E não deviam. Não é como na história de Pedro e o Lobo. Não se trata de mentiras, mas de verdades cruas, intoleráveis, que olhamos com insensibilidade quase como se fossem naturais. É o caso do (mau) funcionamento da justiça. Com uma regularidade que devia impressionar em vez de imunizar, revoltar em vez de alhear, vão caindo notícias sobre atrasos absurdos e penalizadores. Quase todos fruto de um sistema que parece concebido para ser usado e abusado pelos mais ricos e poderosos, neles incluindo o Estado. A incapacidade dos sucessivos ministros da Justiça de alterarem este estado de coisas desespera, embora desperte uma certa simpatia pelo que de quixotesco tem a sua função.
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Os exemplos abundam. São os trabalhadores cuja empresa faliu e que recebem a sua indemnização dez ou vinte anos mais tarde, sem qualquer ajustamento para a inflação. Valores que, à data, teriam significado transformam-se, com o tempo, num insulto não sendo, sequer, suficientes para pagar a um advogado que se quisesse remunerar pelo trabalho havido. Noutros casos, são pequenos investidores iludidos por empreitadas que nunca se concretizaram e que no processo viram desaparecer, sem contrapartida, as pequenas poupanças de uma vida. Os casos arrastam-se em tribunal, entre recursos e dilações, legítimos ou meros expedientes. Quando a sentença vem, e lhes é favorável, repete-se a história anterior: compensações irrisórias, ofensivas da dignidade. Às vezes, porque há alguém mais obstinado, com mais saber ou poder, o assunto chega às instâncias europeias. A sistemática condenação do país, por violação dos direitos humanos, devia envergonhar-nos. Ao invés, de tão comum, já nem destaque tem.
Não sou um especialista. Não sei o que fazer. Limito-me a tentar traduzir a revolta e vergonha que são, acredito, partilhadas por todos, incluindo os oficiais do ofício da Justiça quando considerados isoladamente. Em conjunto, é o que se vê! Se o Ministério da Justiça é incapaz de mudar este estado de coisas, talvez a pressão da opinião pública pudesse ajudar desde que estes casos recebessem a cobertura mediática sistemática que merecem. Um dia pode tocar-nos a nós. "Denunciar e envergonhar" podia ser o lema.
Denunciar e envergonhar em casos de morosidade inaceitáveis. Denunciar e envergonhar em casos em que quem decide revela falta de bom senso. A fazer fé na notícia do JN, uma juíza em Coimbra aduziu, não sei se por escrito ou apenas oralmente, como argumento para a suspensão da pena o facto de o arguido pertencer a uma família respeitável, de pessoas de bem, conhecida na cidade. Invertendo os papéis, conjecturou a vergonha do pai em ver o filho condenado por ganância. Concluiríamos que um órfão seria condenado sem apelo. Tal como alguém que não pertencesse a boas e respeitáveis famílias. Aos olhos de muitos, tal deveria ser, pelo contrário, uma agravante. Não vou tão longe, mas que esta senhora juíza revela um peculiar sentido de justiça, que a desacredita e à justiça, lá isso parece-me óbvio. Não há nada nem ninguém que tire daí consequências? Talvez isso ajude a compreender por que chegamos aonde chegamos.
Mas há outros casos que rondam o patológico. O JN tem noticiado, regularmente, o caso do assassinato, às mãos do ex-sogro, de um jovem advogado. O julgamento foi polémico tendo surgido insinuações de que a tal não seria estranho o facto de a filha do assassino ser juíza. O calvário dos pais do malogrado advogado não terminou com a condenação do homicida. "Avós sem ver a neta 196 dias após decisão judicial", titulava o JN. Instituições as mais variadas tratam o assunto com o zelo burocrático típico de gente sem alma, receptiva a todo o tipo de expediente dilatório. Coloco-me no papel dos avós e pergunto-me: se de um dos lados não estivesse uma juíza o processo teria a mesma morosidade? Se a reforma do Estado não passar por aqui, de pouco adianta.
P.S. Os diferentes linguajares são sinal de identidade regional. O JN publicar artigos e reportagens sobre chapéus-de-sol é uma contradição nos termos. Ou não?