As presenças do antigo presidente do Supremo Tribunal de Justiça Noronha do Nascimento e do antigo procurador-geral da República Pinto Monteiro, na apresentação do livro "A confiança no Mundo", da autoria do antigo primeiro-ministro José Sócrates, têm sido servidas na conhecida bandeja justicialista em que alguns jornalistas transformam as suas próprias desconfianças, reducionismos e negacionismos da democracia formal em poderosas armas propagandísticas, tendo por alvo a relação entre quem investiga e administra a justiça e quem detém o poder, seja ele político, económico, social ou cultural.
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Através de manhas velhas e relhas e a partir da pública relação de amizade, cortesia ou respeito mútuo existente entre aqueles três personagens da nossa cena política recente, houve jornalistas que ressuscitaram uma narrativa de suspeição tendo por leitmotiv a destruição das escutas como método de salvamento do então primeiro- -ministro da aplicação do princípio de que a justiça deve ser igual para todos.
Mais uma vez, esse jornalismo justicialista revela o maior desprezo pela letra da lei e os limites da sua interpretação.
Quem o pratica não desconhece certamente que coloca em xeque a confiança dos cidadãos na justiça. E, pelo peso mediático associado aos chamados poderosos, trata-se de uma enorme pressão colocada sobre os termos de validação de um dos pilares da democracia: o da separação de poderes entre quem faz as leis, quem as aplica e quem governa.
Uma coisa é todos sabermos que essa separação nem sempre é respeitada. Outra é tentar fazer crer que nunca é respeitada. E outra ainda é a de tentar persuadir o povo de que não é respeitada porque se trata de uma roda de amigos.
A condição de amigo é demasiado valiosa para poder ser sujeita aos jogos sujos dos poderes e contrapoderes. Confiar ou desconfiar de um sistema, de uma modo de fazer de uma organização, é o resultado de um natural e salutar exercício de análise crítica. E com esse exercício pode bem a democracia em todas as suas virtudes e defeitos.
Mais difícil é que sobreviva nos seus fundamentos à pressão de um jornalismo sensacionalista que patrocina a perversa ideia de que ter um amigo que desrespeitou a lei me obriga, ou sequer impele, a tentar salvá-lo da... lei.
Podemos discordar das políticas que levou a cabo e detestar o estilo de José Sócrates, mas não devemos aceitar essa sinistra sugestão de que a lei não lhe foi aplicada porque tinha uma roda de amigos nas altas magistraturas da nação.
Já basta a austeridade, a expropriação fiscal e o empobrecimento do valor do trabalho a que estamos sujeitos. Não nos empobreçamos ainda mais com um sinistro negacionismo do valor real da amizade.