O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) condenou um psiquiatra a pagar 100 mil euros de indemnização a uma cliente por ter tido sexo com ela no seu consultório, aparentemente contra a sua vontade. O médico em causa havia sido condenado em primeira instância pelo crime de violação, na pena de cinco anos de prisão, suspensa pelo mesmo tempo, bem como a pagar à cliente a quantia de 30 mil euros de indemnização por danos morais. Porém, o Tribunal da Relação do Porto (TRP) absolveu o arguido, quer quanto ao crime, quer quanto ao pedido de indemnização, por ter concluído que ele não usara de violência ou ameaça grave sobre a cliente nem a colocara em estado de inconsciência ou a pusera na impossibilidade de resistir, que são os requisitos previstos na lei para a existência do crime de violação. Sublinhe-se que a parte criminal do acórdão do TRP já não pôde ser objecto de recurso, mas a parte relativa ao pedido de indemnização civil pôde. Foi, pois, este o recurso interposto pela cliente do arguido que o STJ agora decidiu de modo totalmente favorável às suas pretensões.
Corpo do artigo
Não deixa de ser estranha essa decisão, porquanto, sendo admissível legalmente, é contudo bastante raro que os tribunais absolvam um arguido de um crime e, no mesmo processo, o condenem a pagar uma indemnização por danos causados pelos factos constitutivos do crime por que foi ilibado. Para chegar à condenação o STJ, considerou não a ilicitude penal mas a ilicitude deontológica, já que o Código Deontológico dos Médicos estabelece que o médico deve sempre respeitar a pessoa do doente. O Supremo entendeu também que a situação de vulnerabilidade da cliente, bem como a dependência física e emocional que pode existir em relação ao seu médico, torna o assédio sexual uma falta particularmente grave quando praticada pelo médico. Considerando ainda que em momento algum a vítima dera, de modo expresso ou de forma implícita, o seu consentimento aos actos sexuais (coito oral e cópula), o STJ entendeu que o médico se constitui, assim, no dever de indemnizar a cliente pelos prejuízos não patrimoniais do seu acto. E como ela tinha calculado o valor do seu prejuízo não patrimonial em 100 mil euros, o STJ atribuiu-lhe precisamente essa quantia, tendo ainda em conta que a indemnização por danos não patrimoniais tem também um carácter sancionatório.
A primeira consideração que o caso suscita é a de que a conduta do médico é repugnante em termos morais e deontológicos, mas isso não chega para fundamentar uma condenação em direito penal ou em direito civil. Por isso, a decisão do STJ é populista e imbuída de preconceitos sexistas, que cai, por razões opostas, no mesmo tipo de fundamentalismo do velho acórdão da «coutada do macho ibérico». Tal decisão só se compreende como a expressão de uma frustração por o médico não ter sido condenado pelo crime de violação e da concomitante impotência por o STJ já não o poder fazer. Num país onde os tribunais arbitram, por vezes, alguns (poucos) milhares de euros por violações monstruosas em que as vítimas são alvo de hediondos actos de violência física e psicológica, não se compreende a fixação de um montante tão elevado para um caso de actos sexuais sem violência nem ameaças. E se tivermos em atenção que os tribunais, incluindo o STJ, condenam homicidas a pagar indemnizações na ordem dos 50 mil euros pela morte das vítimas, ainda menos se compreende a decisão do nosso tribunal supremo.
Depois, a lei não prevê carácter punitivo à indemnização por danos, por muito que isso custe aos sectores mais fundamentalistas das magistraturas, mas apenas natureza compensadora dos prejuízos efectivamente sofridos. Por fim, não se compreende como é que um homem pode, sem recurso a actos de violência ou a ameaças, levar uma mulher consciente a fazer-lhe sexo oral contra a vontade. Obviamente, ela só o fará se quiser.
Infelizmente, o funcionamento da justiça portuguesa não se estrutura no respeito da lei, do direito e da verdade mas sim em torno da vontade arbitrária dos magistrados. Em Portugal, quem tiver contas a prestar à justiça não fica sob a alçada da lei, como acontece nos países civilizados, mas sim totalmente nas mãos dos juízes, como sucedia na idade média e ainda acontece nos regimes obscurantistas.