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Rafaela Azevedo (humorista e palhaça brasileira) veio a Portugal apresentar King Kong Fran, uma peça que é também um stand up com muita interação com o público e que pretende revirar as entranhas do patriarcado, infligindo nos homens da plateia os clichés machistas e as pequenas violências que as mulheres sofrem no quotidiano. Rafaela já utiliza esse truque da inversão nas redes sociais, para demonstrar o quanto o discurso misógino fica obviamente mais claro e escabroso para todos quando virado ao contrário.
Dizer que um homem feio não tem função social, que os homens acima de quarenta já não conseguem satisfazer uma mulher, ou que ter um pénis pequeno é uma afronta que deve ser punida é habitual para a personagem Fran na sua presença online. Já na peça, o registo complexifica-se porque cruza diversas referências e arquétipos (dramatúrgicos, performáticos e circenses) com o constrangimento masculino e, por contágio, de toda a plateia.
É supereficaz na demonstração do tamanho da violência dos discursos sexistas e da forma como as mulheres são permanentemente sujeitas a pequenas humilhações sociais, invertendo o jogo de poder em uma hora de espetáculo. A mulher gorila que outrora era a aberração do circo decide dedicar-se à performance para se humanizar progressivamente. Porém, antes da catarse final, há que experimentar ser o agente da violência, brincando com o poder que um falo gigante oferece (enquanto arma, microfone e até símbolo de status).
Interage com os homens presentes, comentando o seu corpo, insinuando que a sua roupa é um convite ao assédio, convidando-os a exporem-se, enquanto os demais riem de nervoso, quer por solidariedade com os visados, quer em confronto com a incómoda familiaridade daquelas afirmações, quer pela estranheza de estarem dirigidas ao alvo oposto do habitual.
O plot twist chega no final. Quando a dominadora mulher gorila decide fazer diferente. É que quando, finalmente, tem a oportunidade de consumar a violência, prefere a vingança dramatúrgica (moralizante), à vingança carnal. É um momento emocionante de redenção, esse em que a mulher gorila deixa cair a máscara, a Rafaela deixa cair a Fran, abandona o guião e fala na primeira pessoa sobre o abuso sexual que sofreu na adolescência. A plateia que passara uma hora às gargalhadas (abertas pela comicidade, ou tensas pelo constrangimento) faz um silêncio grave, emocionada.
Já no fim, despida do traje animalesco, isenta de falo postiço, em corpo de mulher, a sua vulva coberta de espelhos reflete feixes de luz sobre a plateia. Dá-se o clímax: mais poderosa do que qualquer falo gigantesco, é uma vulva iluminada. A mulher liberta (do trauma, da sede de vingança, do condicionamento e da vergonha) venceu! E nós todas vencemos com ela! Obrigada, Fran!