Nos tempos de Coimbra do meu pai - falo da década de 1940 -, o Dr. Adolfo Rocha já era o consagrado Miguel Torga. Foi por essa altura que publicou os três textos dramáticos que lhe conhecemos: “Terra Firme” e “Mar”, ambos de 1941, e “O Paraíso”, de 1949. Ora, o meu pai-estudante estava metido na Sociedade Filantrópica Académica de Coimbra e foi, com um colega, ao consultório do médico-escritor. Queriam organizar uma representação de “Mar” e, atendendo que os proventos seriam para acudir a jovens necessitados, pediam-lhe que prescindisse dos direitos de autor.
O homem concordou, ou deu a entender que o fazia, e a peça foi a cena com o sucesso pretendido. Pelo menos, até chegar à Filantrópica, dias depois, a conta do escritor pela representação pública da sua obra. O homem era aquilo a que chamamos um agarrado, e a rapaziada teve mesmo de pagar.
Claro que lhe fizeram saber do descontentamento, presumo que em estrita pureza vernacular. E o homem sabia bem o que tinha feito e sentia vergonha. Quando via ao longe, na rua, os estudantes que havia defraudado, subia a gola do sobretudo, afundava o chapéu, atravessava a rua e estugava o passo. Comentava o amigo do meu pai: “Lá vai um porco-espinho a corta-mato!”.
A vergonha acaba por ser um sinal de grandeza, e o genial Torga perdoar-me-á, da gloriosa eternidade onde se encontra, misturar-lhe aqui o nome com gente que se especializou na desvergonha. Eu penso que pessoas de bem (usando o conceito dos portugueses de bem que André Ventura roubou a Sidónio Pais, outro verbo de encher da história política portuguesa) teriam vergonha ao ver-se misturadas com ladrõezecos de malas, tarados que pagam a menores por sexo, enfim, tudo o que, muito provavelmente, vier a emergir de um partido que, por nada ser ideologicamente, tende a atrair pessoas que nada são moralmente.
Mas, enfim, não haverá ali vergonha, jamais veremos Ventura a fugir como um porco-espinho a corta-mato. Pode estar a ficar submerso em excremento, mas manter-se-á à tona esbracejando e dizendo que não é um político como os outros. Fez um partido que é ele próprio, e isso permite-lhe duas coisas: capitalizar as asneiras dos que o rodeiam, renegando-os, e seduzir os desorientados que nele ainda poderão votar.

