Um dos problemas centrais na organização dos poderes soberanos do estado prende-se com a sua legitimidade. De onde é que emanam esses poderes? Quem os outorga? Por que é que se tornam aceitáveis pela sociedade democrática? O que é que os legitima?
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O estado português adoptou a forma de uma república democrática visando a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Os valores matriciais do estado são pois a liberdade, a justiça e a solidariedade.
Um dos princípios fundadores do estado democrático é o princípio da plenitude da soberania popular, ou seja, o princípio segundo o qual toda a soberania reside no povo. Assim, todos os poderes do estado têm a sua fonte no povo e devem ser exercidos em seu nome e no seu interesse. O povo constitui a única fonte legitimadora dos poderes soberanos, ou seja, do poder legislativo, do poder executivo e do poder judicial. Mas será mesmo assim?
Quanto ao poder legislativo, não temos dúvidas, pois todos os seus titulares resultam de escolhas feitas directamente pelo povo através de sufrágio directo e universal. Todos os cidadãos são chamados periodicamente a escolher aqueles que durante um período delimitado de tempo exercerão a função de fazer as leis da República. Por isso, em qualquer estado moderno o Parlamento é a Casa da Democracia.
Algo semelhante se passa com a escolha dos titulares do poder executivo que são escolhidos também pela via democrática, através de sufrágio directo e universal, mas de forma indirecta. O partido mais votado apresentará ao Presidente da República as pessoas que propõe para constituir o governo, incluindo o Primeiro Ministro, tendo em conta os resultados das eleições legislativas, ou seja do sufrágio que elegeu os deputados. Todos os governantes são empossados pelo Presidente.
O próprio Presidente da República, que é o garante do regular funcionamento das instituições democráticas, é também ele escolhido periodicamente através do voto secreto e universal de todos os eleitores, podendo candidatar-se ao cargo qualquer eleitor com mais de 36 anos de idade. Embora não detenha poderes executivos nem legislativos, o PR exerce, contudo, uma relevante função moderadora do exercício daqueles poderes. Sintomaticamente, o PR não pode exercer mais de dois mandatos consecutivamente.
Temos, por fim, o poder judicial, cuja legitimidade levanta sérias dúvidas. Em primeiro lugar quanto à escolha dos seus titulares, depois quanto aos critérios que orientam essa escolha e finalmente, quanto ao escrutínio da sua actividade concreta.
Uma pessoa que, além da licenciatura em direito, possua o grau académico de mestre pode ser magistrado desde que passe num exame de acesso a um centro de formação judiciária e, cerca de dois anos depois, seja aprovado num outro exame que avalia os conhecimentos adquiridos durante a formação. De facto, (só) será magistrado, ou seja, titular do poder judicial, quem for aprovado naqueles dois exames do Centro de Estudos Judiciários que é dirigido por magistrados.
Convenhamos que é pouco. Não há, como se vê, qualquer elemento democrático neste processo, sabendo-se até quão falível esse método pode ser, já que permite o recurso a expedientes fraudulentos para se conseguir a aprovação nos exames, como, aliás, é público e notório. Além disso, é também muito preocupante a quantidade de familiares de magistrados que são aprovados nesses exames internos.
Através de dois exames internos num centro de formação judiciária um jovem com 26, 27, 28, ou 29 anos de idade torna-se titular de poderes soberanos para toda vida, poderes esses que exercerá de forma absolutamente independente e irresponsável pois ninguém lhe poderá pedir contas pelas suas decisões. E o único escrutínio da sua função soberana será feito através de inspecções efectuadas por colegas mais velhos, de forma quase clandestina e que acabam quase sempre na atribuição da nota máxima aos inspeccionados.
Ora, numa república democrática as coisas não deveriam passar-se assim. A escolha dos magistrados, sobretudo dos juízes, deveria ser feita através de métodos democráticos e devidamente escrutinada pelo povo em nome de quem, afinal, é suposto eles administrarem a justiça.