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O "outro caso" do momento (para além do Freeport) é, de certa perspectiva, um enredo de terror, onde sofrem, acima de tudo, os funcionários assalariados e os "pequenos depositantes" (continuamos sem saber quantos).
Mas, de outra vertente, parece uma história da carochinha, embrulhada, à antiga, em versões infantis, declarações de boas intenções, pregações sobre moral pública, citações do cárcere e largas doses de mau-olhado. Mau-olhado à antiga, com figas e bruxas de aldeia, a maldizer rivais ou inimigos, por encomenda do clã, dos filhos da viúva, ou desta mesma.
Com um arguido detido, um processo em curso, uma nacionalização in extremis (já lá vamos), ligações internacionais investigadas (o misterioso Banco Insular parece ser só a ponta do icebergue), perícias, inquirições, buscas, mandados, diligências continuadas, o "affaire BPN" é um aparente, ou evidente, caso de delito de colarinho branco, em série e de alto coturno.
Mas, para a imaginação popular, obnubilada pelos serões de telenovelas, pode surgir como uma mera continuação das trapalhadas em família, dos romances de cordel, dos episódios de faca e alguidar, importados do México, do Brasil, ou das ruas de Lisboa.
É, no entanto, urgente fazer luz sobre o assunto: entre especialistas e investigadores, e entre o gentil público.
Começando pelo princípio, tem de se dizer que tudo relevaria, apenas, de um ajuste de contas entre accionistas, de uma assembleia--geral mais ou menos tumultuária, de uma disputa judicial ou extrajudicial entre lesados, se não se tivesse dado a nacionalização, e se o BPN não tivesse aterrado, por essa via, no prato raso do contribuinte.
A mesma nacionalização foi justificada, pelo Executivo e pelo PR (que promulgou rapidamente os diplomas relevantes), com a urgência de evitar o colapso de uma instituição "sistemicamente relevante", que transmitiria as consequências da sua falência a toda a banca nacional. Foi assim que a situação foi identificada: por outras palavras, o BPN valia abaixo de zero, à altura da intervenção.
Agora, há reconstruções parcelares da história. Oliveira e Costa sugere, por um lado, que o "grupo" (e não só o Banco) estava em crise grave desde 1997, mas que foi salvo desta por ele. E que só retornou à deficiência pelo "complot" tragicómico de um grupo proprietário, que afastou o "salvador" e inviabilizou as suas propostas.
O depoente na comissão parlamentar acrescenta duas coisas: mesmo exemplos radiosos de sucesso, como a Autoeuropa, podem soçobrar (como quem diz "se um gigante pode, nós também, que éramos pequenos"), e o BPN, apesar de tudo, teria activos e património acima do que consta. Por outras palavras, talvez a nacionalização não tivesse sido necessária.
A tese da "nacionalização imperativa e urgente" tinha também sido contestada, se bem me recordo, por Miguel Cadilhe, e a situação negativa do banco, à data da nacionalização, foi contestada pela SLN, que pede centenas de milhões de indemnização pela expropriação.
O Executivo Sócrates diz que se baseou, para a avaliação da gravidade do caso, em "entidades fidedignas". Mas uma destas, pelo menos, foi denunciada por Oliveira e Costa como ineficaz, inábil, incapaz de trabalhar e culpada de incumprimento contratual grave.
Interessaria, assim, saber onde começa a lenda, e pára a narrativa.
Onde está a efabulação e a verdade.
O resto é cenário.