A decisão da França de introduzir no seu texto constitucional a possibilidade de retirada da nacionalidade a cidadãos binacionais culpados de "ofensa grave à vida da nação" - na realidade, pretendendo abranger pessoas ligadas a atos terroristas - tem sido contestada em vários setores. Percebe-se esta preocupação do Executivo francês, por boas e menos boas razões.
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As boas razões têm a ver com a importância para a França da ameaça terrorista. Os acontecimentos de 2015 (Charlie Hebdo e múltiplos atentados em Paris) suscitaram na sua opinião pública uma forte reação, porque questionaram, de uma forma extrema, a própria identidade e sentido nacional de quem é formalmente francês. Paralelamente, ficou instalada no seio da sociedade uma sensação de vulnerabilidade e de desconfiança quanto à capacidade do Estado em cumprir as funções de tutela da segurança dos seus cidadãos.
A França, um país generoso em matéria de nacionalidade - o seu atual primeiro-ministro, até aos 20 anos, teve apenas a nacionalidade espanhola -, interroga-se hoje sobre se essa sua extrema diversidade não estará a ser usada para colocar em causa a unidade nacional.
Não sei como nós, portugueses, nos sentiríamos se acaso, como vi ocorrer em França, num estádio de futebol, ouvíssemos o nosso hino a ser apupado por uma grande parte dos espectadores e víssemos desfraldadas, por todas as bancadas, bandeiras de um país que nada tinha a ver com o jogo em causa.
As "menos boas" razões prendem-se, desde logo, com a objetiva ineficácia da medida: para um terrorista, a última questão que lhe importará será uma cidadania francesa que objetivamente despreza.
Porém, como português, tendo em França centenas de milhares de compatriotas com dupla nacionalidade, preocupa-me a utilização que um eventual Governo menos atento às liberdades e ao acolhimento da diferença poderá vir a fazer com o conceito de "ofensa grave à vida da nação".
Muitos se interrogam assim sobre se esta decisão não poderá comportar um certo oportunismo político, isto é, se um Governo de Esquerda, uma área política tradicionalmente não vista como a mais sensível às questões da segurança, não estará, por esta via, a "apanhar o comboio" de um discurso securitário que, em regra, surge tutelado pela Direita, ou mesmo pela extrema-direita.
Mas qual é o problema, perguntar-se-á o leitor? É muito simples: restará saber se a Esquerda, que tradicionalmente assume o papel de guardião das liberdades, não estará a abrandar esta sua histórica atenção ao deixar consagrar na lei fundamental algo cujo derradeiro aproveitamento poderá não conseguir controlar.