Assinalei o 38.º aniversário da Revolução do 25 de Abril em Sernancelhe, um concelho do distrito de Viseu, bem no coração daquilo que Aquilino Ribeiro designava, num livro publicado em 1919, como as Terras do Demo.
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O convite foi-me dirigido pela Câmara Municipal local dado que na ocasião foi também homenageado um colega e amigo, o dr. Manuel de Lima Bastos, pela sua obra sobre o mestre Aquilino que nascera em 1885 naquele concelho.
A deslocação a Sernancelhe permitiu-me conhecer pessoalmente o bispo emérito de Setúbal, D. Manuel da Silva Martins, essa grande figura da nossa vida pública que nos anos 80 erguera a sua voz contra a miséria que grassava na sua diocese e em defesa da dignidade da pessoa humana e, por isso, teve de suportar bastantes agruras pessoais. Também ele fora convidado para essas celebrações do 25 de Abril, as quais decorreram sob o signo de Aquilino e da homenagem a um dos seus mais destacados divulgadores. Com efeito, Manuel de Lima Bastos é autor de vários livros sobre Aquilino Ribeiro, além de um Roteiro Aquiliano que nos permite surpreender a beleza natural daquela região bem como conhecer a riqueza da sua cultura, da sua gastronomia e do seu imenso património. Só no raio de cerca de uma légua existem mais de uma dúzia de mosteiros, alguns dos quais, infelizmente, já em ruínas.
Mas a minha ida a Sernancelhe possibilitou-me conhecer, sobretudo, uma parte da população daquela zona do país e partilhar com ela o sentimento de abandono que a habita. Sim, as pessoas sentem-se, hoje como no passado, abandonados pelo poder político que só se interessa por elas (de vez em quando) nas eleições e (sempre) para lhes cobrar impostos. Pude conhecer o valioso contributo da Câmara Municipal para a qualidade de vida dos idosos, o importante trabalho de educação musical das crianças e, principalmente, o enraizamento da democracia e da liberdade no quotidiano daquelas gentes.
Ali, onde tudo o que se consegue é sempre com redobrados sacrifícios, senti que a liberdade conquistada com o 25 de Abril de 1974 só tem sentido se estiver ao serviço da verdade. A liberdade, enquanto valor ideológico, não é um fim em si mesma, mas um meio, um instrumento, para nos libertar dos constrangimentos da necessidade e para nos habilitar a uma procura mais autêntica da verdade. O contributo de cada um para o progresso social e para o aperfeiçoamento coletivo tem de ser livre, pois só a liberdade permite o desenvolvimento harmonioso das potencialidades de cada pessoa e, consequentemente, só em liberdade cada um poderá contribuir genuinamente para o bem comum. A liberdade individual só faz sentido em democracia se for usada para combater a mentira. As escolhas políticas que o povo soberano é chamado a fazer periodicamente só serão verdadeiramente democráticas se as pessoas estiverem conscientes do alcance dessas opções, ou seja, se as pessoas estiverem esclarecidas. E o esclarecimento faz-se com a verdade e não com a mentira. Por isso, aqueles que ocultam a verdade aos cidadãos, aqueles que enganam os cidadãos, cometem um crime de lesa democracia. A liberdade sem esclarecimento, sem verdade, pode transformar-se no pior inimigo da democracia e da própria liberdade.
O 25 de Abril de 1974 foi, sobretudo, um grande momento de verdade, talvez o maior da nossa história, porque pôs fim a um longo período em que a mentira fora soberana; pôs fim a um regime que, tendo começado por anunciar a verdade nas finanças públicas, acabou, ele próprio, por se transformar numa das maiores mentiras de sempre deste país. E as suas nefastas consequências são hoje bem conhecidas. Por isso, é altura de todos assumirmos a luta pela verdade como um dos mais saudáveis desígnios da democracia conquistada em 1974.
Quem mentiu ou mente ao povo soberano não pode invocar nenhuma legitimidade para exercer cargos públicos. Quem mente aos eleitores perde todas as legitimidades democráticas, incluindo - diria mesmo: sobretudo - a de governar. Em rigor não se pode representar aqueles que foram enganados. A mentira ou até a simples omissão da verdade gera um vício de representação que esvazia o mandato político de toda a legitimidade democrática.