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As medidas Mais Habitação apresentadas pelo Governo visam dar algum sentido ao direito dos cidadãos a uma habitação condigna, conforme prevê o art.º 65.º da CRP. Mas não só. O item relativo ao licenciamento de obras para habitação servirá de instrumento importante na luta contra a corrupção ou a percepção que dela se tem. De entre aquelas medidas, surgem regras relativas ao licenciamento das obras de construção de casas para habitação. Sob a epígrafe "Simplificar o licenciamento", regista-se que "os projectos de arquitectura e de especialidades deixam de estar sujeitos a licenciamento municipal, passando a haver um termo de responsabilidade dos projectistas, ficando o licenciamento municipal limitado às exigências urbanísticas". Complementa-se a medida com a "efectiva penalização financeira das entidades públicas que não respeitem os prazos previstos na lei para a emissão de pareceres ou tomadas de decisão, passando a correr juros de mora a benefício do promotor", deduzindo o Estado "no Orçamento do ano seguinte" os prejuízos provocados pelo "causador da demora". Parece-me essencial a adopção destas medidas, porquanto é na burocracia destes procedimentos camarários e dos parques nacionais de protecção da natureza que se desenvolve um enredo opaco que dura, por vezes, anos a resolver. Se o requerente ou promotor tem de recorrer ao crédito bancário para a construção, na maioria dos casos, inicia o pagamento do crédito e dos juros muito antes de obter o licenciamento requerido. Não afirmo ser voluntário o labirinto criado pelos decisores finais, mas não se compreendem as razões de tanta demora e exigências, por vezes repetidas. É neste ambiente que paira a percepção da corrupção. Os exemplos são infindáveis, mas exporei apenas um: o proprietário de um terreno urbano requereu ao município competente a aprovação do projecto de arquitectura para implementar nele uma pequena casa de madeira, primeira habitação, para a família. O responsável remeteu, via email, o processo ao respectivo parque nacional para parecer, que foi negativo. A Câmara determinou alguma rectificação do projecto. Satisfeita esta exigência, o funcionário camarário volta a remeter o processo ao parque que, todavia, não emite qualquer posição devolvendo a competência para decisão final à Câmara. Esta não aceita. Assim, o pedido de licenciamento ficou num limbo, com ambas as instituições atribuindo à outra a competência. A Câmara não decide e o parque não se pronuncia. O impasse resiste a todo o bom senso e contra os legítimos interesses do munícipe. Este processo prolonga-se já por cerca de um ano. É neste percurso nebuloso que se suscita a dúvida sobre a existência da corrupção ou a percepção dela. Por isso é fundamental e de interesse público a regulação precisa e clara deste segmento das medidas a favor da habitação, para bem dos direitos do cidadão e para a afirmação da transparência, eficácia e eficiência dos serviços públicos.
a autora escreve segundo a antiga ortografia
Ex-diretora do dciap