Corpo do artigo
O lince é o mais aceitável dos gatos, porque nem gato é. Um gato nunca é só um gato, tem tanto de felino quanto o que os donos põem de seu nele. Nenhum lince consentiu que o retratassem de perfil numa parede do Egipto - nenhum lince deixou que o mumificassem num embrulho de pano, perto do dono faraó, sem intestinos, sem vísceras, com o cérebro em picle num frasco à parte. Nem na história da humanidade algum lince trocou a mata pelo apartamento.
Os gatos nacionais são invenções de Miguel Esteves Cardoso e os gatos estrangeiros de T.S. Eliot. Tanto os escreveram que os gastaram. Ninguém aguenta nem mais um parágrafo de gato. Os linces ficaram por escrever, excepto por biólogos e técnicos de conservação, gente com empenho mas sem literatura.
Os gatos fizeram de nós acariciadores de pêlo, fornecedores de ração húmida, mudadores de liteira e suspiradores de miados no Instagram. Para os linces fomos duas coisas mais sérias: exterminadores primeiro, salvadores depois. São bichos que nos respeitam profundamente, dão-se connosco em assuntos de vida ou de morte.
Os gatos nunca estiveram em perigo de extinção. Contam-se aos milhares pelas ruas, pelas casas, por cada recanto e esconderijo da Internet. De noite há sempre ao longe um gato que geme de cio e de falta de vergonha. Já os linces-ibéricos, há vinte anos contavam-se às poucas dezenas pelos montados, entre rochas e arbustos, em fuga. Em Espanha, durante o franquismo, eram exterminados pelas Juntas Provinciais para a Extinção de Animais Nocivos e Protecção da Caça. Em Portugal, foram morrendo à fome e ao abandono, manjando coelhos marinados em mixomatose.
O Centro Nacional de Reprodução do Lince Ibérico conta-se entre os poucos lugares mágicos onde se faz a alquimia das espécies. Imagino que lá se trabalhe com o encanto de Dian Fossey entre os gorilas, ou que lá se veja crescer raras jóias de pêlo e garra. De dezassete linces, nos últimos quinze anos, o CNRLI fez várias dezenas de novas raridades. Foi anunciado há poucos dias que o lince-ibérico saiu da lista das espécies em extinção.
Não só o perseguimos e diabolizámos, como agora temos o gosto de o salvar e glorificar. Ao contrário do gato, que apenas nos dá a alegria de sermos tolerados, o lince-ibérico dá-nos a compensação ética de o salvarmos. E embora já ninguém suporte crónicas de felinos, crónicas de gato ao peito, crónicas de bicho assanhado, o lince sobreviveu e merece que o escrevamos de maneira um pouco ridícula.
O autor escreve segundo a antiga ortografia