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Numa época em que impera o culto do novo, a longevidade de Manoel de Oliveira numa área como o cinema, vivendo permanentemente debaixo dos holofotes, era uma enorme provocação. Numa sociedade que esconde ou abandona os seus velhos, a sua energia, a sua irredutível vontade de não parar de filmar até ao último dia, foi a última luminosa lição de vida que nos deixou.
Para sempre, ficará uma figura ímpar da cultura portuguesa com uma filmografia de quase 70 títulos, que arrancou em 1931 com uma outra provocação, "Douro, faina fluvial". Nem que Manoel de Oliveira não o tivesse planeado, foi assim que os críticos portugueses o sentiram, pateando na estreia o filme que retratava com realismo a dureza da vida da Ribeira portuense, enquanto os estrangeiros presentes saudavam o início de uma carreira em que tantas vezes esta dicotomia, entre o desprezo dos portugueses e aplauso dos estrangeiros, se repetiu.
O filme seguinte só surgiria 11 anos depois e será talvez a sua obra mais consensual, "Aniki-Bóbó", um retrato mágico sobre a infância que consolidaria também uma relação com a cidade que o viu nascer, que ele nunca mais largou em vida e a que regressou periodicamente na sua obra. "O pintor e a cidade" (realizado 14 anos depois da fria receção de Aniki-Bóbó) e "Porto da minha infância" são alguns dos capítulos portuenses de Oliveira, que manteve também uma relação profunda com o Douro, em filmes essenciais como "Vale Abraão" ou o documentário "O acto da Primavera".
Este último título foi motivo para a prisão pela PIDE e para perturbar uma carreira que só arrancaria em todo o fulgor com a democracia. Carreira em que Manoel de Oliveira foi paulatinamente alargando o seu território autoral. Para sempre ficará "o filmar à Oliveira" (com tempo, em longos planos, em modo teatral), os "atores de Oliveira" (como Luís Miguel Cintra, Leonor Silveira, Ricardo Trepa ou Catherine Deneuve), os "escritores de Oliveira" (como Agustina Bessa-Luís, António Régio ou Camilo Castelo Branco) ou "burguesia de Oliveira" (em filmes como "O passado e o presente" ou "Party"). Todas estas e outras apropriações são a prova da enorme dimensão da sua obra.
Mas por muito que os últimos anos tenham servido para consensualizar a figura do mais "velho cineasta do Mundo em atividade", muitos portugueses continuarão a ver a obra de Manoel de Oliveira com incómodo e é muito provável que ele não quisesse provocação menor que essa. Essa é a alma de um artista e essa não morreu.