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Não podemos aceitar como normal o que se tem passado nos últimos dias. Com indisfarçável consternação, o dirigente da UGT, João Proença, revelou que o ministro da Economia justificava o rompimento dos acordos que tinha assumido relativamente à forma de cálculo do subsídio de desemprego, em sede de concertação social, invocando o desacordo dos funcionários da troika! Uns dias mais tarde, um ousado projeto de reformas que alegadamente fora encomendado pelo Governo ao FMI, chegava ao conhecimento dos portugueses, em primeira mão, através da Comunicação Social e desencadeou imediatamente um emotivo debate público, como se fosse uma lei soberana da República. Assumindo a "encomenda" do estudo mas sem explicar a fuga de informação, veio mais tarde o Governo lavar as mãos do respetivo conteúdo.
Éevidente que a fuga de informação serve os planos do Governo, que assim deixa correr por conta de terceiros a missão ingrata de criar as condições psicológicas propícias à apresentação das políticas que de facto tenciona impor e que, por certo, mais uma vez irão ultrapassar o "memorando de entendimento", como gostava de dizer o primeiro-ministro. Contudo, a precipitação e desvelo com que responsáveis partidários, jornalistas e crónicos comentadores, acorreram a assumir espontaneamente tal tarefa deve ter deixado os governantes enternecidos.
Acrise financeira do país, cuja responsabilidade ainda ninguém assumiu apesar das evidências dos diagnósticos conhecidos, continua em processo de averiguação da paternidade. Pelo contrário, a responsabilidade pelos inumeráveis sacrifícios que estamos a suportar tem um rosto, já identificado pelos linguistas da "Porto Editora": a troika! Imaginaram os ingénuos que mal iniciasse funções, o Governo iria lançar mãos à reforma do Estado, único caminho para conseguir, de forma séria, racional e sustentável, um redimensionamento do Estado e da despesa pública à escala dos recursos que produzimos e da sociedade democrática que ambicionamos. Terrível engano! Apenas um ano e meio depois, somando já sucessivos fracassos, lembraram-se os governantes da urgência de "refundar o Estado", com a ajuda do FMI e do Banco Mundial, à moda do Terceiro Mundo.
Ogeneral Beresford veio até cá para ajudar os portugueses a expulsar as tropas invasoras de Napoleão Bonaparte. Derrotados os franceses, como o rei de Portugal nunca mais se decidia a regressar do Brasil, Beresford ia governando em nome dele, e foi preciso fazer a Revolução de 1820 para acabar com a governação de Beresford e com a monarquia absoluta. O "ultimatum" britânico ofendeu os sentimentos patrióticos e desacreditou a monarquia constitucional, criando uma onda de indignação que desembocou na Revolução de 31 de Janeiro de 1891 e no triunfo da República, uns anos mais tarde.
Quanto mais o Governo esconde a sua verdadeira agenda de empobrecimento coletivo e abdica das suas responsabilidades perante os eleitores nacionais, menos acreditam os cidadãos na seriedade da ação política, nas virtudes democráticas, na dignidade da República. A crise é política e reside neste Governo que se transformou numa realidade espectral, sem doutrina, sem projeto, sem base partidária consistente nem sustentação social. Antes que a aceleração da crise torne inevitável a dissolução do Parlamento e a convocação de novas eleições antecipadas, a atual maioria e este Presidente têm obrigação de procurar outra fórmula governativa capaz de traçar outras políticas e de congregar novas solidariedades. Vale a pena considerar as lições da história porque ela frequentemente se repete, ora como farsa ora como tragédia.