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Há momentos em que a realidade é demasiado cinematográfica. Trump sofreu um atentado e as ilações mais prováveis a tirar no calor do imediatismo eram as da conspiração. Os admiradores disseram que haveria de ser coisa dos democratas, esses esquerdistas radicais, que se movem pela violência e querem derrotar pela força o que não conseguem nas urnas. Os opositores afiançaram que haveria de ser encenação, porque há sempre uma facada ou uma bala, seguida de um salvamento improvável, para dar fulgor às campanhas dos populistas e toda aquela cena foi demasiado perfeita para não ter sido encenada.
Uma bala passa de raspão, arranhando apenas a orelha do orador em pleno comício e, logo após o susto, este tem a clareza de espírito de levantar o punho e clamar por luta, encarando o público com expressão de força, com uma bandeira desfraldada de fundo (a condizer com o sangue no rosto), num quadro épico imortalizado em vídeo e em foto, que parece, de facto, demasiado bem conseguido para ter sido arbitrário. Uns disseram que o governo americano negligenciou a segurança do opositor ao presidente, outros que os próprios criaram o problema para se vitimizar. E, ao que sabemos, o sniper era um jovem solitário que agiu por motivações próprias e que, provavelmente, achou que iria salvar o seu país e o Mundo, acabando por matar um homem anónimo e por morrer num telhado, baleado pela polícia.
Biden condenou o ataque dizendo que na América “não há lugar para este tipo de violência”, numa declaração que, ficando bem, é falsa. A América cultiva este tipo de violência todos os dias, sendo o próprio Trump conhecido por ser o maior defensor da liberalização das armas. Toda a cultura americana tem por base um espírito belicista que louva permanentemente as forças militarizadas, uma iconografia ligada ao uso de armamento (dos revólveres dos cowboys, às explosões épicas dos filmes de ação) e uma normalização dos tiroteios em espaços públicos.
Ora se a América tem lugar para massacres em escolas e para a morte de crianças e jovens ano após ano, se tem lugar para o assassinato de pessoas negras vítimas do racismo das forças policiais, se tem lugar para cumprir com os interesses da indústria do armamento, sendo conivente com tantas guerras no Mundo e, neste preciso momento, com o genocídio na Palestina, estranho seria não ter lugar para uma coisa destas. O mais lógico, num país que vende armas em estações de serviço, é que a violência entre nas campanhas eleitorais e só não tem entrado mais vezes, pelo enorme aparato de segurança que protege os políticos, como uma redoma blindada, em (quase) todas as ocasiões.