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Há alguns anos, estava Miyazaki angustiado com os desenhos de uma lagarta em andamento, quando lhe apresentaram a ideia de integrar sequências geradas por inteligência artificial. Os passos da lagarta dariam menos trabalho. “Estou estarrecido”, respondeu ele. “Nunca incorporaria esta tecnologia na minha arte.” E mais: “Sinto que isto é um insulto à própria vida.”
Tenho pensado no que quer isto dizer. E ocorre-me que cada imagem dos Estúdios Ghibli, da doçura determinada da Princesa Mononoke à viagem de Chihiro rumo ao resgate dos pais e à maturidade, vem de um sítio chamado alma. Aquilo não são imagens, aquilo somos nós. Nenhuma linha, nenhum frame, nenhuma personagem ficou por sofrer. São vislumbres do sublime, o momento em que nos reconhecemos de forma estrangeira.
Por estes dias, uma nova capacidade do ChatGPT ficou na berra: gerar imagens com a estética dos Estúdios Ghibli. Se a própria inteligência artificial percebesse a ironia de imitar um estilo avesso a reproduções, e que nasceu da obsessão artística de Miyazaki, mais do que perceber, se a sentisse na pele, como criatura cairia de joelhos aos pés do criador.
Mas a esfinge tudo sabe e nada sente. É uma mão sem dono. As imagens que prontamente partilhamos não vêm do sítio constrangido e cheio de esperança de onde nasce a arte. Só isso explica que a esfinge não se arrepie ao desenhar Pedro Nuno Santos, Montenegro ou Carlos Moedas ao estilo de Miyazaki, ou que aceite transformar Lisboa numa espécie de Tóquio de trazer por casa.
Falou-se novamente de direitos de autor, de usurpar os artistas, dos perigos da IA face à crise energética e até do dilema ético de ghiblizar momentos históricos dramáticos, ou mesmo de instrumentalizar essa estética para suavizar opções políticas controversas.
Mas eu acho que isto se resolve com pragmatismo. Vamos fazer com que a esfinge sofra. Dêem-lhe a angústia do próprio Miyazaki, façam-na questionar cada opção artística, acordem-na de noite com suores frios, dêem-lhe a ânsia, ensinem-lhe a falta de confiança, acrescentem dores musculares e, já agora, completem com uma dose doentia de síndroma de impostor, a ver se a esfinge reincide. Mostrem-lhe como vivem os artistas – e ela nunca mais produz uma única imagem.
Mas, cuidado, nunca lhe falem da exaltação de criar, nunca lhe ensinem a alegria dos momentos raros em que fizemos alguma coisa única – é que a esfinge aceitaria todas as dores e nunca mais a conseguiríamos deter.
O autor escreve segundo a antiga ortografia