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1. Em matéria de cultura e costumes, a sociedade portuguesa, pelos anos 60 do século passado, não estava assim tão distante dos movimentos sociais e das tendências artísticas, filosóficas e políticas que há 50 anos abalaram a Europa e a América. Embora reprimida e silenciada pela censura, antes e depois da revolta de maio, em Paris, também aqui fervilhava a contestação juvenil em tertúlias, conferências, manifestações de rua, greves, panfletos clandestinos, palavras de ordem pintadas nas paredes. Multiplicavam-se os confrontos nas universidades de Coimbra, Porto e Lisboa com a Polícia e com seguranças contratados que os estudantes designavam pejorativamente por "gorilas". Entre a rejeição da moralidade hipócrita vigente, o desprezo pelas hierarquias, a crítica dos conteúdos do ensino, os protestos contra a ditadura e a guerra colonial, as cargas policiais, prisões, encerramento de associações, a oposição ao arcaísmo das "praxes" académicas, a ocupação de cantinas e salas de aula, processos disciplinares e expulsões, nada conseguiu travar a crescente agitação juvenil. É neste contexto vasto e cosmopolita onde se inclui a denúncia da guerra do Vietname e o combate pelos direitos cívicos nos Estados Unidos da América, no ano anterior, que se inscreve a revolta de maio de 1968, em Paris. A sua radicalidade e a amplitude da sua força mobilizadora iriam assumir uma dimensão inédita que inspirou profundas mudanças das atitudes e comportamentos de gerações sucessivas, até aos nossos dias.
2. Numa entrevista do "Nouvel Observateur", de 20 de maio de 1968, incluída numa coletânea de depoimentos publicada pela Éditions du Seuil, nesse mesmo ano - La Révolte Etudiante, les animateurs parlent - é Jean-Paul Sartre quem interpela Daniel Cohn-Bendit, assim, nestes termos: "Em poucos dias, sem que uma palavra de ordem de greve geral tenha sido lançada, a França ficou praticamente imobilizada pelas paragens no trabalho e pelas ocupações das fábricas, porque os estudantes se transformaram nos senhores da rua no Bairro Latino. Qual é a vossa análise do movimento que lançaram? Até onde poderão chegar?". E Daniel Cohn-Bendit responde que o movimento tomou uma dimensão que ninguém tinha previsto. Que o objetivo, nesse instante, é a "queda do regime" mas conseguir ou não derrubá-lo já não depende do movimento. Mas o filósofo, mais adiante, insiste e contrapõe: "O que se tornará irreversível no movimento atual, na vossa opinião, admitindo que, em breve, possa ser derrotado?". E Cohn-Bendit confessa as suas apreensões sobre a capacidade de operar "uma mudança real do sistema", caso o Governo do general De Gaulle caísse e a Esquerda conquistasse o poder... E termina, depois de afirmar a importância de pôr termo à divisão social entre estudantes e trabalhadores: "bem entendido, tudo isso não é para amanhã mas qualquer coisa começou, que vai prosseguir, necessariamente". A "festa" apenas durou até junho mas a irreverência perdurou.
3. Ao mesmo tempo que combate a crença nas "vanguardas dirigentes" que fizeram e desfizeram outras revoluções, Daniel Cohn-Bendit manifesta, nessa distante primavera, a esperança no papel decisivo que podem desempenhar as "minorias ativas" e confia nas virtudes da espontaneidade popular: "O nosso movimento provou que a espontaneidade popular mantinha o seu papel no movimento social". Uma ambição desmedida de transformação da sociedade combinou-se com a modéstia e o realismo de quem reconhece os limites e os riscos da ação mas que não se resigna, não se conforma, não desiste.
DEPUTADO E PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL