<p>Se não tivéssemos memória, não seríamos tão críticos em relação aos políticos. Anteontem, ouvindo José Sócrates, todos nos recordámos de frases suas e de ministros do seu Governo, por exemplo sobre o TGV. Que a sua construção não aumenta o défice. Agora, para combater o défice, recua-se (ainda que só nas linhas de e para o Porto), com o argumento de ir ao encontro das opções dos partidos da Oposição. Quando se falou das SCUT, Sócrates deitou mão do inatacável argumento da solidariedade. É melhor que nem nos lembremos. </p>
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Este exercício de puxar pela memória é, aliás, perverso: escutando dirigentes da Oposição vemos como eles dizem hoje coisas bem diferentes das que proferiam estando no Governo. Toca a todos.
Curiosamente, os políticos não parecem muito preocupados com estas trocas de discurso. O que é natural. Raramente são penalizados e a coisa até pode ser vista por outro lado: as declarações contraditórias encerram, afinal, uma boa dose de pragmatismo, qualidade que um político deve ter e que, no fundo, reflectirá uma rápida capacidade de adaptação às circunstâncias.
Os jogos de palavras inscrevem-se, aliás, no mesmo espírito pragmático, traduzem, eles também, a mesma capacidade de adaptação a novas circunstâncias. Quando Sócrates diz que não aumenta os impostos, está certíssimo. Tão certo quanto nós sabermos que vamos pagar mais. O que acontece é que nós vamos pagar mais porque, entretanto, foram reduzidas as deduções possíveis. Os exemplos multiplicam- -se, à esquerda e à direita com os actuais e passados protagonistas políticos, do Governo e de todas as oposições.
O eleitor parece conviver alegremente com estas mutações de discurso. Mais desencanto, menos desencanto, naquilo que realmente interessa, que é o resultado, ninguém tem sido gravemente afectado por isto. O descontentamento com o PS penalizou-o, é certo, nas últimas eleições e beneficiou um partido - o Bloco de Esquerda - especialista em apontar o dedo, em não deixar passar o erro dos outros, tornando-se na consciência crítica de certa Esquerda, mas incapaz, apesar disso, de chegar ao poder sequer de um número considerável de autarquias. Mas, no mais, tudo corre sem sobressaltos, com os partidos do arco do poder a revezarem--se e a procederem a constantes alterações do discurso.
Haverá um dia - possivelmente haverá - em que os cidadãos eleitores se interrogarão em número considerável se não estamos perante mentiras. Aí teremos um problema sério. Pessoalmente, não acredito que se trate de mentiras, embustes, actos propositadamente preparados para nos enganar. Nem acredito que o partido A tenha mais propensão do que o partido B para estas alterações de discurso. Mas acredito, nisso acredito firmemente, que os políticos, se não aumentarem consideravelmente as suas preocupações éticas - ética no discurso, ética na sua prática política - nos conduzirão muito depressa para um jogo de verdade e mentira que a maioria dos eleitores decidirá apenas segundo o seu clubismo político, e que nos levará, num ápice, à bancarrota da democracia.