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Era já evidente que estas eleições europeias seriam as mais importantes de sempre. Também parecia claro que os principais protagonistas para elas selecionados iam assegurar uma disputa aberta e belicosa. No entanto, ninguém previa que um novo e credível "partido" introduzisse uma verdadeira bomba no debate político eleitoral. Mas comecemos pela ímpar importância de um sufrágio que, normalmente, só serve para medir o desinteresse dos cidadãos medido pelo grau de absentismo e pela dose de voto de castigo que penaliza o circunstancial poder nacional. Esta eleição tem, contudo, outros e suculentos ingredientes. Ela decidirá se António José Seguro será o candidato socialista a primeiro-ministro e consolidará ou não uma candidatura PSD/CDS com listas conjuntas nas eleições legislativas. Abrirá ou bloqueará, ainda, o diálogo institucional interpartidário para o pós-troika.
O debate político, visando uma disputa muito centrada em Paulo Rangel e Francisco Assis, estava completamente lançado e parecia não abrir espaço para grandes alternativas argumentativas.
O cabeça de lista do PSD ia glosar repetidamente o comprometimento de Assis com o descalabro da herança de José Sócrates e Assis ia colar Rangel à governação de uma austeridade que teria sido excessiva, inadequada e injusta.
Assis insistiria nos excessos que teriam ultrapassado em muito o conteúdo do memorando subscrito pelo Estado português e Rangel defenderia a ideia do escrupuloso cumprimento do mesmo, traduzido nos resultados já obtidos.
Ambos, até em decorrência do seu nivelamento intelectual, iriam também debater a necessidade de um grande e novo movimento reformista europeu, com mais federalismo económico, mais harmonia social, mais crescimento e mais emprego.
Ora, é este debate que, desde ontem, está completamente inquinado, parcialmente ultrapassado. O tal "novo partido", ou seja um grupo de setenta personalidades, quase todas de partido, relançaram as bases para todo um outro debate.
Personalidades como Bagão Félix, Adriano Moreira, Manuela Ferreira Leite, Silva Lopes, João Cravinho, Braga da Cruz, Catarina Martins e Francisco Louçã, entre outros - curiosamente não existem subscritores da área do PCP, subscreveram em conjunto um documento reflexivo sobre a situação político-económica do país. Nesse documento, com a credibilidade decorrente do perfil dos subscritores, é defendida uma tese que, até agora, era um exclusivo da extrema-esquerda e do PCP. É verdade que Seguro chegou a colocar o problema, mas de imediato foi silenciado pelos seus parceiros europeus.
Segundo o texto agora publicado, Portugal devia renegociar a sua dívida pública, principalmente a que resultou no programa de assistência que agora terminará. Essa negociação pressuporia um grande alargamento do prazo de ressarcimento dos credores, uma reponderação de juros e, teria que ser imposta, mesmo que afrontando a vontade de alguns parceiros mais fortes, como a Alemanha da Senhora Merkel!
É verdade que o gigantismo da dívida compaginado com um crescimento económico, mesmo que razoável, dá alguma consistência a esta tese reflexiva. Mas é ela minimamente viável, como reagiriam os parceiros europeus e os mercados a tal invetiva, que consequência teria no resto da Europa que está sob programas semelhantes?
E o que vão dizer disto o PSD, o CDS, o PS, o Governo e o presidente da República?
Está aberta a Caixa de Pandora. Para já e para o debate de médio prazo, englobando legislativas e presidenciais.
Está criada mais uma linha de fratura de divisão interna dos partidos, nomeadamente do Partido Socialista.
Está empurrado para o debate o presidente da República que, quando empurrava os partidos para um consenso, não estaria a pensar exatamente nisto. Isto apesar de dois dos seus colaboradores mais próximos subscreverem o referido documento.
O documento em apreço está, todavia, manchado por vários anátemas. É liderado por muitos dos rostos que, em funções governativas, foram responsáveis por políticas que conduziram o país ao resgate de 2011. É completamente omisso no que diz respeito às necessárias reformas de Estado, sem as quais todo o caminho percorrido terá sido em vão. Tem graves omissões técnicas, como a que parece ignorar que uma parte substantiva da dívida a renegociar está na mão de particulares e instituições financeiras.
Pela minha parte não posso deixar de dar uma opinião: a tese tem sustentabilidade factual, sendo no entanto esgrimida em momento inoportuno e está poluída pelos pré-referidos pecados capitais. A possibilidade dela ser defendida oficialmente pelo Estado português neste momento seria um suicídio. A oportunidade dela ser discutida em privado e um dia serem os credores a oferecerem essa possibilidade é um cenário improvável, mas sempre em aberto.