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Eu não sei como é que há ainda quem não tenha vergonha de dizer que desta vez é que temos de aproveitar bem os fundos de Bruxelas porque desta vez é que é de vez. Depois desta não há mais! A primeira vez que ouvi isto foi na passagem do 2.° para o 3.° Quadro Comunitário de Apoio nos idos de 2000.
A questão devia ser posta ao contrário. Temos de tentar fazer melhor porque é uma vergonha termos sempre tanto dinheiro e não sairmos da cepa torta.
Mas o que é que se passa então? Se não andamos todos a roubar, e não andamos, por que raio é que não damos o salto?
1. Porque o dinheiro que vem não é para baixar o défice e folgar rapidamente as contas públicas;
2. Nem é para acudir rapidamente a situações de pobreza;
3. Nem para pagar indemnizações.
Se fosse, tínhamos folga orçamental garantida, menos austeridade, melhores taxas de juro, menos pobreza e a possibilidade de redimensionar dignamente os serviços públicos.
Tenho para mim que talvez valesse a pena fazer isto. Para um país a atravessar as nossas dificuldades atuais, um bom resultado da política de coesão seria conseguir alinhar a nossa capacidade de desenvolvimento com a dos restantes estados-membros ajudando a resolver um dos seus principais problemas. Quer isto dizer usar o dinheiro para atenuar o défice e ganhar folga para fazer crescer a economia.
Mas, pelos intrincados caminhos da construção europeia nunca nada é assim tão simples. O que disse acima deve mesmo ser herético e ferir uma boa tonelada de preceitos.
Resignemo-nos portanto a um olhar impassível para mais um extraordinário envelope financeiro de quase 25 mil milhões de euros (contando fundos estruturais e fundos agrícolas) para investir nos próximos sete anos.
Tendo em conta a obrigação de o investir numa miríade de projetos para atingir outros tantos objetivos, sejamos justos e vejamos o que foi bem feito até aqui:
1. Desde logo a capacidade de pela 5.ª vez consecutiva conseguir provar à Comissão Europeia que valia a pena atribuir-nos tal montante;
2. Depois o facto de o governante com responsabilidade direta sobre este dossier (secretário de Estado do Desenvolvimento Regional) ter claramente resistido à tentação de fazer terra queimada do que já foi experimentado, procurando ao invés fazer melhorias incrementais; é raro registar este bom senso em quem chega à governação; com poucas alterações a metodologia de atribuição dos fundos segue o que foi montado para o QREN (07-13) esse sim, tributário de uma profunda alteração operacional;
3. Já em termos estratégicos há mudanças muito importantes, das quais ressalto:
a) A preocupação com os resultados e não com o desempenho - ou seja, mais do que saber quantos formandos conseguimos, quantas máquinas ajudamos a comprar ou quantas obras se fizeram, será necessário saber quantos continuaram na escola, quantos obtiveram emprego, quanto poupamos em licenças para emissões de carbono ou quanto cresceu o orçamento da I&D público e privado no país;
b) A valorização da aproximação territorial integrada aos problemas; ou seja, perceber que os projetos devem convergir para uma solução adequada às especificidades do território e aos seus vários "stakeholders";
c) A introdução de um sistema claro de "accountability" responsabilizando todos os elos da cadeia pelos resultados parciais e globais a atingir;
Ainda não se divisa perfeitamente como é que tudo isto será conseguido.
O Acordo de Parceria (substituto do QREN e agora chamado Portugal 2020) foi esta terça-feira publicado no site do Governo juntamente com uma apresentação sintética, útil para quem não segue de perto estas questões.
Veremos se as novidades acima são assumidas com coragem por todo o Governo.
Veremos igualmente se as comunidades serão capazes de aproveitar a oportunidade que se lhes apresenta. Quem for sério e ler os números (só para o Norte são 3,3 mil milhões de euros mais a parte dos cerca de 12 mil milhões que obrigatoriamente terão de ser aplicados nas regiões de convergência) verificará rapidamente que não pode continuar a esconder--se atrás de estafadas lamúrias sobre falta de dinheiro disponível e o seu imaginado sequestro em Lisboa.
