Ignorada, no seu canto, a TV debita imagens, ronronando, fazendo jus ao seu estatuto de novo animal doméstico. De repente, o ecrã enche-se com um rosto, marcado e marcante. "Too old to rock and roll, too young to die" (demasiado velho para o rock and roll, demasiado novo para morrer), como diriam os Jethro Tull. Presta-se atenção. Fala--se do rendimento social de inserção. Que mingua, mês após mês. E a voz, segura, suave e triste. Não me lembro, exactamente, das palavras. E devia. Um lamento. O lamento de quem depende do que, se pressente, entende como uma esmola. "Nunca dependi de ninguém. Ganhei, sempre, o meu sustento com estas mãos. Dizem que não queremos trabalhar. Não é verdade! Trabalho? Onde? O quê? Quando? Não há!". O desalento de quem quer, pode e não alcança. Gritado, em voz baixa, quase envergonhada, com a serenidade dos injustiçados.
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Voz baixa, serena, que se repete no sussurro do militante do PSD que se abeira de Passos Coelho, no fim de uma sessão sobre a reforma do Estado. Lá em casa, diz-lhe, avós, pais, os da sua geração, todos vivem angustiados. Di-lo quase ao ouvido. E quando o primeiro-ministro o encara, dispara-lhe, como quem lhe conta um segredo: vocês estão a afundar o país! Incapaz de reagir ao murro no estômago, Passos Coelho esboça um sorriso e passa à frente.
Dois momentos a que só a televisão podia fazer justiça. Dois momentos que só são novos na forma como a desesperança se expressou. Sem estridência. Em privado. Com a violência serena dos justos. "Uma raiva a nascer-te nos dentes", dizia Sérgio Godinho.
"Vemos, ouvimos e lemos/não podemos ignorar", falava a Sophia. Ninguém ignora. Nem o Governo. A questão não é essa. A questão é saber se o caminho escolhido nos leva a algum sítio ou se esse destino não passa de uma inalcançável miragem. Como distinguir? Quando acordar para a realidade?
Os dados da evolução do PIB, em 2012, conjugados com os do desemprego, podem ser o banho frio. Revelam o risco de apostar tudo numa única frente. Dir-se-á : não havia alternativas. Pois bem, desde pelo menos meados do ano passado que era evidente a desaceleração económica dos nossos principais mercados. As consequências não eram difíceis de antecipar. As empresas não podiam fazer mais. Encontrar e entrar em novos mercados demora tempo e requer políticas, acções e incentivos concretos. Foi, por isso, patético ver a aparente surpresa com que os números foram recebidos. Se a reacção fosse verdadeira só havia uma solução: despedir todos os responsáveis, por incompetência.
A prioridade há-de continuar a ser a frente externa. Os números do PIB e do desemprego demonstram a necessidade de olhar com outros olhos para a frente interna. Não ao nível macroeconómico, mas com políticas dirigidas aos agentes económicos e ao território. Os sectores mais assentes nos recursos endógenos, neles incluindo os "recursos humanos", merecem uma especial atenção. Agricultura, vinhos, floresta, cortiça, pasta e papel, turismo são fileiras e sectores com grande potencial de valor acrescentado nacional e em que já existem empresas e iniciativas meritórias. Mas são, igualmente, estes sectores e empresas que evidenciam a falência das políticas para o território, onde quase tudo está por fazer. O combate à desigualdade passa também, em muito, por aí.
O processo de ajustamento não pode ser nem sequencial, nem unidimensional. Não é primeiro finanças e depois economia, nem primeiro as exportações e depois o mercado interno. Nem hoje e, depois, logo se verá. É precisa uma visão de conjunto. Afinações (nas) políticas. No seu apelo algo ingénuo, Seguro fez um favor ao Governo. Ao aceitarmos dialogar com técnicos estávamos, implicitamente, a aceitar que as políticas eram, e continuavam, certas, sendo os problemas meramente de execução. Como se prova, não era o caso. O Governo fez quase tudo como devia e os resultados globais não são brilhantes. A corda está esticada. Será culpa da envolvente. Será, decerto, incompetência política a nível europeu. Pouco importa, agora. Ainda se está a tempo de mudar. É apenas um pouco tarde!